Por Nonato Reis
Completou 14 anos e viu que na sua Pedreiras, ou mesmo em São Luís, onde já estivera seguindo o eco de matracas e pandeirões, não havia futuro, só muros.
João Batista do Vale queria ser
cantor e mostrar sua arte. A bordo de boleias de caminhão pegou estrada e saiu
perambulando. Aportou em Fortaleza e escreveu carta ao pai, explicando por que
deixara a terra natal, praticamente fugido. “Eu não tenho nada, mas sei fazer
versos. Vou me tornar conhecido, ganhar dinheiro e ajudar a família”.
Chegou ao Rio dois anos depois, e além de escrever versos, só sabia carregar pedras e fazer massa de cimento. Foi trabalhar como ajudante de pedreiro nas construções de Copacabana. Era a época de ouro do rádio e dos programas de auditório. João sabia que ali estava o seu território. Queria ter suas músicas gravadas por Zé Gonzaga, umas das estrelas da época, mas foi com Marlene que ingressou no universo da música com “Estrela Miúda”.
Alumiar terra e mar
Pra meu bem vem me buscar
Há mais de mês que ela não
Que ela não vem me olhar
A garça perdeu a pena
Ao passar no igarapé
Eu também perdi meu lenço
Atrás de quem não me quer...”
João era um matuto sem instrução, mas tinha a musicalidade e sabia traduzir a alma do sertão, forjada na aridez do solo e na força do sentimento. Logo perceberam a beleza poética de seus versos que falavam tão bem ao coração e à consciência.
Conheceu Nara Leão e Zé Keti, nomes já consagrados da MPB. Nara era inconformada com a situação do País, então sob a égide do regime fardado. Keti, excelente letrista. João lia a realidade das ruas e do mato e as transformava em poesia. Foi como juntar a fome, o prato e o garfo.
Da parceria entre os três surgiu o show Opinião, que sacudiu a sonolenta Bossa Nova e deu um novo rosto à MPB. Na esteira do “Opinião”, João comporia músicas que iam do baião ao xote e até ao rock (as batidas de “Coronel Antônio Bento”, imortalizada na voz de Tim Maia, sugerem uma mistura de baião e de rock caipira). Até samba ele compôs. E qual seria o samba de João do Vale?
“Meu samba é a voz do povo
Se alguém gostou
Eu posso cantar de novo”
Essa música, na voz de Paulinho da Viola, fez um sucesso estrondoso, não apenas pela força melodiosa, mas por misturar com extrema leveza dois signos nem sempre harmônicos: poesia e protesto.
Protesto, que aparece nitidamente nesta sequência de versos:
“Eu fui pedir aumento ao patrão
Fui piorar minha situação
O meu nome foi pra lista
Na mesma hora
Dos que iam ser mandados embora”
E implícito neste jogo de metáforas:
“Eu sou a flor que o vento jogou no
chão
Mas ficou um galho
Pra outra flor brotar
A minha flor o vento pode levar
Mas o meu perfume fica boiando no
ar”.
Nara Leão era o grande nome do show Opinião, mas foram as músicas de João que entraram para a história. “Pisa na Fulô”, “Peba na Pimenta”, “Canto da Ema” “De Teresina a São Luís”. Nenhuma, porém, igual a “Carcará”, que junto com “Triste partida”, de Luiz Gonzaga/Patativa do Assaré, é considerada o hino do sertão.
Carcará, responsável por lançar Maria Bethânia ao estrelato, é uma música nitidamente sertaneja, que fala da crueza da seca e da resistência do homem, simbolizada na força da ave que dá nome à canção.
“Carcará, lá no sertão
É um bicho que avoa que nem avião
É um pássaro malvado
Tem o bico volteado que nem gavião”.
Certa vez perguntaram a João quantas músicas ele havia feito. “Mais de 400”, respondeu. Mesmo assim gravou pouco como cantor. Seu negócio era compor e entregar aos outros.
Conviveu com a nata da intelectualidade musical e dela granjeou respeito e admiração. Chico Buarque, Tom Jobim, Caetano, Gil, Bethânia... Chico, aliás, seu parceiro de muitas incursões, gravaria em 82 “João do Vale convida”, com participação de Nara Leão, Tom Jobim, Gonzaguinha e Elba Ramalho. O disco seria premiado como a melhor produção daquele ano.
João do Vale, considerado o maranhense do século, foi sem dúvida o artista local de maior prestígio no universo da música popular brasileira. Um talento que, mesmo sem o suporte das letras, delas fez a sua grande obra-prima e por elas se imortalizou. Como disse o jornalista Zuza Homem de Mello, “João do Vale não é antigo nem moderno, ele é eterno”.
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