Por João Batista Duarte Azevedo
Não sei ao
certo quando surgiu o Porto da Raposa. Quando me entendi, ele já existia. Mas
só vim conhecê-lo de fato quando vim para a cidade pela primeira vez. Tinha que
se passar por ali. Era lá o embarque nas lanchas que nos traziam até a capital.
Encravado às margens de extenso Igarapé que rasga continente adentro, o antigo Porto da Raposa ficava no povoado campestre de mesmo nome, a poucos quilômetros do Golfão Maranhense (Baia de São Marcos) e do estuário do Rio Mearim. De um lado uma extensa cortina verde formada por manguezais, de outro, mais para dentro do continente, extensas áreas de campos e tesos.
Ao longo de muitas décadas foi a única porta de entrada e saída de muitos municípios da baixada, especialmente São João Batista, São Vicente Férrer, Matinha, entre outros. Estamos falando de mais de meio século. Naquele tempo não havia estradas que ligassem estes municípios à Capital do Estado. O porto cumpria assim então a sua primordial finalidade. Era ponto de escoamento de mercadorias que iam e vinham e de embarque de passageiros que se destinavam rumo a São Luís e vice-versa.
Ainda lembro vagamente de algumas particularidades daquele lugar. Eram dois os principais atracadouros, exatamente para duas lanchas que costumavam fazer o transporte de cargas e passageiros. Eram dois pares de extensas passarelas, construídas de achas e mourões de mangue que nos levavam até ou a parte baixa, ou à parte alta da lancha, o convés, onde ficava o timoneiro, ou mestre, e onde ficavam os passageiros.
Nas lanchas, percebia-se um hiato de classes plenamente justificável. Na parte de baixo, costumavam viajar aqueles que transportavam cargas além de suas bagagens pessoais. Um odor forte de óleo e amônia exalava em meio ao cheiro de café e cozidão que costumava vir das bandas da cozinha. Já na parte alta, o segundo andar, vinham os mais destemidos, os que não tinham muito medo dos constantes balanços no alto mar e não costumavam expelir involuntariamente suas comidas boca a fora.
Às vezes três ou mais lanchas ancoravam por ali. Todas bem nomeadas. Maria do Rosário. Santa Teresa, esta, pequenina e valente, boa de navegação. A Proteção de São José, que sucumbiu na maior tragédia náutica ocorrida naquela travessia. A Ribamar. A Fátima. A Nova Estrela e a Imperatriz foram as últimas dos tempos auge do transporte marítimo. Nestas últimas fiz a maioria das minhas viagens.
A Raposa era um lugar como muitos outros numa área de campo. As casas de jirau, mostravam que ali em épocas de inverno costumava ser úmido e encharcado. Eram habitações de madeiras, desde o assoalho até as paredes. As cobertas, algumas eram de telhas de barro, outras de pindobas. Naqueles tempos de plena atividade do velho porto, Raposa devia ter cerca de cinquenta casas. A maioria eram de pessoas que viviam em função do porto. Pequenos comerciantes, estivadores, donos de pequenas embarcações e até mesmo ambulantes que viviam da compra e venda de mercadorias e produtos. Eram todos hospitaleiros. Lembro de Seu Dominguinhos, sempre cortês, atencioso, mas, dizem os que mais o conheciam, de uma astúcia e malícia sem precedentes.
Entre as muitas peripécias atribuídas a Seu Dominguinhos está a de ter dado um pernoite ao Padre Dante que certa vez se deparou numa noite escura e não quisera voltar pra sede. Fora aconselhado a ficar por ali. Após acomodar o Padre em uma rede, contam que Seu Dominguinhos acendeu uma fogueira de pau de siriba, uma espécie de mangue que ao queimar expele uma fumaça ardente aos olhos de qualquer cristão, ainda mais a quem não era acostumado, como o sacerdote italiano. Contam que o Padre passou a noite em claro, rezando para que logo amanhecesse, enquanto Dominguinhos se contorcia de risos. Ao amanhecer os olhos do reverendo pareciam duas bolas de sangue.
As principais casas de comércio e pequenos restaurantes estavam ali em redor do armazém. Um velho prédio de alvenaria que servia como uma espécie de alfândega. Era lá que trabalhavam os fiscais da receita estadual. Ali eram expedidas e pagas as guias de impostos sobre o que era embarcado, fossem cofos de farinha, cofos de banana, cofos de criações, pequenos e grandes animais. Quase nada passava sem as vistas dos coletores de impostos. Nos dias de embarque e desembarque era bastante intenso o movimento de pessoas por ali. Fossem os que viajavam, os que ali trabalhavam, e os que apenas buscavam estar no meio do vai e vem das pessoas. Não faltavam também os donos de bancas de jogo de caipira. Mas era uma alegria só. O povoado era tão movimentado que ganhou até um gerador de luz para garantir a permanência das pessoas que por ali transitavam e trabalhavam até o zarpar das lanchas.
Nos dias que não se tinha esse movimento proporcionado pelas lanchas, o povoado de Raposa mantinha um quotidiano normal. Moradores em suas tarefas diárias preparavam-se para o dia seguinte. O incremento maior do porto fora sem dúvida quando da construção da “barragem da Raposa”. Esta grandiosa obra - tanto pela extensão como na forma de como fora construída, realizada pelo então prefeito Luiz Figueiredo - permitiu um tráfego maior de veículos por mais tempo ao longo do ano.
A partir da abertura da Estrada da Beta, nome que fora dado inicialmente pela população para o ramal São João Batista – Bom Viver, que ligou a sede do município à MA -014, começaram ainda que com muitas dificuldades por conta das condições da estrada, os transportes de cargas e passageiros por via terrestre, fato este que atingiu frontalmente o cerne da economia gerada no Porto de Raposa por conta do transporte marítimo. Os primeiros ônibus a fazerem linha para São João Batista e até mesmo para outros municípios da Baixada foram os da Expresso Florêncio, que inúmeras vezes não completavam o trajeto da viagem.
Hoje, com poucas casas e sem aquele fervilhar de pessoas que faziam dali um marco da economia do município, o Porto da Raposa precisa se redescobrir com um outro propósito já que a rodovia nos leva até a capital São Luís, ou a terras além do estado.
Sempre defendi que o antigo e outrora próspero Porto da Raposa deveria absorver em tempos atuais outras finalidades. Ao que parece, por obra e graça do tempo e pela resistência de alguns poucos moradores que ali ainda residem, esta é uma realidade próxima das novas gerações. Por conta de sua aprazibilidade e beleza natural, o velho Porto de Raposa poderá ressurgir como um ponto de lazer rústico. Para tanto falta-lhe estrutura e muito precisa ser feito.
Com a palavra os homens dos poderes!