sexta-feira, 4 de maio de 2018

A CRÔNICA DO DIA


HOJE É DIA DE... 



SÃO GONÇALO E O MEU DIA DE DON JUAN

Nonato Reis

Todo homem, mesmo aqueles propensos à beatificação, tem a sua fase de transgressão. Uma onda de calor toma o corpo de assalto, cai na corrente sanguínea e causa um furor danado. O sujeito se joga no mundo igual cigano, sem parada certa; ou como símio, pulando de galho em galho. É uma vontade de viver tudo ao mesmo tempo, como quem, morto de sede, e com medo que a água se evapore antes de saciá-la, entorna o copo de um só gole. 
Eu, mesmo atrapalhado por uma timidez aguda, também tive o meu momento Don Juan. Mas isso foi há muito tempo. Já havia entrado para a universidade e a minha família acabara de se mudar em definitivo para São Luís. Mesmo assim, ligado às origens, não perdia uma oportunidade de visitar os parentes que deixara no interior. Vieram os Jogos Universitários, cerca de 10 dias sem aulas. Filósofo e Don Juan, meus colegas de faculdade e companheiros inseparáveis, foram curtir o recesso em cidades distintas. O primeiro em Alcântara, o segundo em Santa Inês. Eu me vi como o falcão solitário na imensidão do oceano. Botei a mochila nas costas e alcei voo para o Ibacazinho.
Eu tinha uma garota, cujo namoro já se arrastava por mais de um ano. Gostava dela, mas era uma relação certinha demais e vez por outras eu dava um suspiro e espichava o olhar para a estrada de terra batida. Lá adiante, no lugar chamado Vinagre, ia haver um baile de São Gonçalo, uma festa maravilhosa regida por violão e rabeca, em que os dançarinos evoluem com passos ritmados em sentido horizontal e vertical. Eu amava aquilo, e até hoje, quando tenho oportunidade, não perco um baile desse de jeito nenhum.
A festa de São Gonçalo compreende sete dias de preparação, com ensaios pela manhã, tarde e noite, e a representação no último dia. Dei as caras logo no primeiro ensaio. O dono da festa não me conhecia, mas logo fez amizade comigo e me escalou para ser o fogueteiro, aquele que ativa os rojões, assinalando o início e o final do ensaio. Eu me mudei para a casa dele, e lá era tratado feito um príncipe. 
Café da manhã na rede, lanche na hora certa, banho quente, presentes a toda hora, boas conversas e ótimas companhias.
A propósito, ele tinha uma filha, a Gabriela, que fazia dilatar as pupilas: morena clara, olhos verdes quase castanhos, cabelos compridos. Quando sorria surgiam duas covinhas que se costuma chamar de sinais de beleza.
Meus olhos se encheram por ela. Mas havia um problema que me doía os nervos. Estava noiva de um colega meu que, aliás, foi quem a apresentou para mim. Toda a família apostava na relação, menos eu. 
Dentro de mim começou então uma luta danada entre poder e querer, desejo e razão. Eu descobri logo que devia seguir o coração, mesmo que isso, depois, me custassem lágrimas. Mas era um nó difícil de desatar. Mesmo noiva, Gabriela vivia assediada.
Os homens todos só faltavam se ajoelhar diante dela. Pensei na teoria da diferenciação, e concluí que, se quisesse ter alguma chance, não podia seguir aquele cortejo. Tinha que ser singular, jamais plural.
Me fiz de “ausente” ao seu redor. Passei a me concentrar apenas nos deveres de fogueteiro. No dia do baile, a minha habilidade em soltar fogos já havia conquistado a admiração de meio mundo e eu me via rodeado de mulheres. 
Descobri que ali estava a chave para conquistar o olhar da garota: dar-lhe as costas e penetrar os olhos que me cercavam.
Uma menina bonitinha e provocante colou em mim feito mosca de bolo. Aquilo era demais e eu não podia me fazer de inocente. A namorada adoecera, queimava de febre; sequer fui vê-la. Ela é que veio ao meu encontro no meio da festa. Mas aí era tarde. Eu já flertava com três garotas, cada uma mais bonita que a outra, e nem me lembrava mais que tinha namorada. Entorpecido de festa, até Gabriela eu esquecera, momentaneamente.
Preocupei-me apenas em ser habilidoso a tal ponto que fizesse crer às meninas que eu estava apenas com uma e não com todas ao mesmo tempo. A solução engenhosa que encontrei foi ficar do lado de fora do salão. Sentei-me numa mesa comprida, formada de toras de palmeira, e fiquei ali ouvindo a música a distância. Quando dei por mim estava cercado dos olhares inquisidores das três garotas e mais o da namorada. Elas me fitavam com tal gravidade que seus olhos pareciam lâminas pontiagudas prestes a cortar-me a carne.
- Que papelão, cara! Eu doente e você no bem bom! Nunca pensei que o meu namorado fosse tão galinha. Você não vale nada.
Eu tentei me defender, mas engoli em seco as palavras. As outras meninas também resmungaram algumas coisas que eu não consegui entender, e logo saíram todas, me deixando às voltas com os meus demônios. Do som que animava a festa, a voz de Diana me alcançou em cheio: “Quando é noite de regresso você briga/Por qualquer motivo/Confesso que tenho vontade/ De ir para bem longe/Pra nunca mais te ver”.
Levantei-me decidido a sair dali. Foi quando Gabriela apareceu diante de mim e quis saber para onde eu ia. “Não interessa. Pra mim isso aqui já deu o que tinha que dar. Vou embora”.
- Vai nada! Daqui você não sai. Meu pai não vai deixar, e nem eu. 
Eu estava decidido. “Quem podia me segurar já está noiva e contra isso eu não posso fazer nada”. Aquilo saiu num sopro e quando me dei conta da bobagem que havia dito, não dava mais para retroceder. 
- Essa garota sou eu?
O que eu podia responder? Com raiva, peguei o boné que deixara em cima da mesa, coloquei-o na cabeça com a frente para trás e levantei. Mas ela se colocou na minha frente e falou, me olhando, com as mãos na cintura:
- Se eu topar, você fica?

Nonato Reis é jornalista, poeta e escritor.

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