Drª Andrea Ramal |
A onda de comentários ofensivos contra os nordestinos que se alastrou
nas redes sociais logo após o resultado das eleições revela que o país não está
dividido somente pela opção política, mas também por um preconceito latente,
pronto para explodir diante da primeira oportunidade.
O que surpreende é que as redes sociais, embora sejam frequentadas por
pessoas de todas as idades, são o espaço privilegiado dos jovens. Como então
sonhar com mudanças, se uma parte importante da juventude, em vez de ousar e ir
contra a corrente, apresenta a mais conservadora e grosseira das atitudes?
De onde vem tal preconceito, a estas alturas? Os caminhos que explicam
são muitos e um deles passa pela educação recebida, tanto em casa como na
escola.
Muitas vezes, até sem perceber, os pais podem ensinar atitudes
preconceituosas às crianças menores. Quando, por exemplo, se referem a alguém
pejorativamente como “aquele paraíba”, “o cabeça chata”, “o ceará”. Somados a
outros adjetivos e comparações que a família possa empregar no cotidiano (“todo
baiano é preguiçoso”, “o ebola só podia vir da África”, “só não gosto de
argentinos”) e pronto, está fértil o terreno para criar uma cabecinha
preconceituosa e xenófoba, presa aos estereótipos do século passado.
Mais tarde, na escola, o estudante pode acabar reforçando visões
discriminatórias, como por exemplo com as mensagens (mesmo implícitas) dos
livros didáticos. Neles, o Nordeste é quase sempre retratado como lugar pobre e
de privações, onde se sofre pela seca. Pouca diferença se faz entre um estado e
outro, como se o Nordeste fosse um amálgama sem identidades, definido só pelos
mapas. O nordestino é descrito, até nas ilustrações, como migrante e retirante.
Em muitos livros didáticos vi uma imagem similar: o personagem
maltrapilho desenhado sob um sol escaldante, a terra cheia de sulcos e aridez,
ele com uma trouxinha, acompanhado de uma mulher grávida com outra criança no
colo, e uma legenda explicando que “nordestinos partem em busca de melhor
destino”.
Um certo livro escolar dá como título ao capítulo que fala do Nordeste
“Penando na terra”, com imagens de seca e sertão. Enquanto isso, ao apresentar
o Sudeste, o capítulo seguinte traz fotos de cenas urbanas, contextos
industriais e desenvolvimento.
Esse discurso reforça uma suposta condição de inferioridade daquele que
nasce numa “região-problema”, “afligida” por um fenômeno climático. Sugere
passividade das populações e vitimização irremediável.
Nas festas juninas, que são das poucas ocasiões em que a cultura
nordestina é trazida para o interior das escolas das demais regiões, as
crianças são fantasiadas de um modo que ridiculariza o homem do campo. O
“caipira” é caracterizado com a roupa remendada, sem combinar as cores, e lhe
faltam dentes, ou dança com as pernas tortas. É a cultura urbana debochando da
cultura rural.
Pouco se fala, no currículo escolar, da riqueza e da heterogeneidade da
cultura nordestina, com sua música, danças, culinária, arte, manifestações
religiosas, as belas festas populares, os grandes nomes da literatura, da política,
da dramaturgia, da indústria, da educação, e da tantas outras esferas.
Qual seria o motivo de tanta agressividade nos comentários registrados
contra os nordestinos? Talvez – é apenas uma hipótese – o fato de que nesta
eleição, os “pequenos” e condenados ao esquecimento hajam tido um papel
protagonista, o que colocou em xeque uma noção de hierarquia regional
cristalizada por longas gerações.
Cabe a nós, pais e educadores, criar oportunidades para educar numa
lógica diferente. Afastar os velhos paradigmas que rotulam regiões e seus
habitantes. Estimular um modelo mental que combine mais com o mundo de hoje,
das redes e interconexões, em que as pessoas precisam trabalhar em grupos
multidisciplinares, aprender com as diferenças e interagir o tempo todo com
empatia e respeito.
(*) Andrea Ramal é colunista do G1 e doutora em Educação pela PUC-RJ
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