segunda-feira, 15 de abril de 2019

A MÃE DE SANTO E AS ALGEMAS


Nonato Reis (*)

A viatura da Polícia Militar parou quase no final da rua, um lugar deserto e de aparência mal cuidada nos arredores de São Luís. O bairro, como tantos outros da cidade, se originara de um processo de invasão e ostentava os sinais da falta de planejamento urbano, com vias esburacadas e lamacentas, esgotos a céu aberto, iluminação precária e serviços de habitação e saúde deficitários.
As portas do veículo se abriram e dele desceram dois homens. Um era oficial de justiça e portava um documento. O outro estava ali para ser imitido na posse do último imóvel do lado esquerdo da rua - um prédio verde encardido em dois pavimentos, com péssima aparência. 
O oficial de justiça checou mais uma vez o documento, conferindo o endereço impresso no mandado com o número colado na parte frontal do prédio e bateu palmas, chamando pelo proprietário. “Ô de casa!”. Silêncio. Chamou de novo: “Ô de casa!”. Nada. Contornou a fachada frontal e se dirigiu a uma das janelas laterais. “Tem alguém aí?”
Tinha. Uma mulher vestida como mãe de santo, toda de branco, portando colares de sementes do mulundu e uma espécie de turbante na cabeça, surgiu na porta da frente, com cara de poucos amigos. “O que vocês querem aqui?” O oficial pediu desculpas pelo incômodo. De fato havia alterado um pouco a voz, já imaginando que não havia ninguém na casa. Mas, fazer o quê, são os ossos do ofício. Tratou de se apresentar.
- Sou oficial de justiça e tenho um documento para a senhora Maria dos Anzóis Pereira. É a senhora?
Ao invés de responder, a mulher perguntou.
- Que documento é esse?
- Uma imissão de posse para este senhor, que é o autor da ação. A senhora é a dona Maria dos Anzóis Pereira?
A mulher fitou o oficial como se quisesse esganá-lo, os olhos prestes a sacarem das órbitas.
- Ela não está...
- E quem é a senhora?
- Sou o caboclo das correntezas, o dono do “cavalo”. O senhor vai se atrever a mexer com um espírito das águas?
O oficial, já com anos de vivência na função, compreendeu que estava diante de uma patacoada e reagiu sem perder a pose.
- Olha, a ordem do juiz é para imitir o cidadão aqui na posse do imóvel e prender quem se opuser ao cumprimento do mandado. A entidade do além vai resistir?
O rosto da mulher avermelhou e, os olhos faiscando, desafiou o oficial.
- Aqui ninguém entra. E se tentar entrar eu mando para o fundo das correntezas espirituais.
O oficial então gritou na direção da viatura, estacionada a poucos metros dali.
- Capitão, chegue aqui, e traga dois pares de algemas. 
Dois policiais fardados deixaram a viatura e se aproximaram da casa. O capitão, ao olhar a mulher, questionou o oficial.
- Mas por que dois pares de algemas, se só tem uma pessoa?
E o oficial, em tom solene:
- Um par é para o senhor caboclo das correntezas, e o outro é para o “cavalo” dele, que responde pelo nome da dona Maria dos Anzóis Pereira. 
Antes, porém, que o militar levasse a ordem a sério a mulher berrou "vão pegar o demônio", e, junto com o caboclo das águas, desembestou na carreira, sumindo dentro de um matagal, no final da rua.
....
(*) Nonato Reis é jornalista e escritor.  A crônica acima integra o livro "Ossos do Ofício", que resgata histórias vividas por oficiais de justiça no cumprimento de mandados judiciais. Com lançamento previsto para o final do ano.


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