Nonato Reis (*)
A viatura da Polícia Militar parou quase no
final da rua, um lugar deserto e de aparência mal cuidada nos arredores de São
Luís. O bairro, como tantos outros da cidade, se originara de um processo de
invasão e ostentava os sinais da falta de planejamento urbano, com vias
esburacadas e lamacentas, esgotos a céu aberto, iluminação precária e serviços
de habitação e saúde deficitários.
As portas
do veículo se abriram e dele desceram dois homens. Um era oficial de justiça e
portava um documento. O outro estava ali para ser imitido na posse do último
imóvel do lado esquerdo da rua - um prédio verde encardido em dois pavimentos,
com péssima aparência.
O oficial
de justiça checou mais uma vez o documento, conferindo o endereço impresso no
mandado com o número colado na parte frontal do prédio e bateu palmas, chamando
pelo proprietário. “Ô de casa!”. Silêncio. Chamou de novo: “Ô de casa!”. Nada.
Contornou a fachada frontal e se dirigiu a uma das janelas laterais. “Tem
alguém aí?”
Tinha. Uma
mulher vestida como mãe de santo, toda de branco, portando colares de sementes
do mulundu e uma espécie de turbante na cabeça, surgiu na porta da frente, com
cara de poucos amigos. “O que vocês querem aqui?” O oficial pediu desculpas
pelo incômodo. De fato havia alterado um pouco a voz, já imaginando que não
havia ninguém na casa. Mas, fazer o quê, são os ossos do ofício. Tratou de se
apresentar.
- Sou
oficial de justiça e tenho um documento para a senhora Maria dos Anzóis
Pereira. É a senhora?
Ao invés
de responder, a mulher perguntou.
- Que
documento é esse?
- Uma
imissão de posse para este senhor, que é o autor da ação. A senhora é a dona
Maria dos Anzóis Pereira?
A mulher
fitou o oficial como se quisesse esganá-lo, os olhos prestes a sacarem das órbitas.
- Ela não
está...
- E quem é
a senhora?
- Sou o
caboclo das correntezas, o dono do “cavalo”. O senhor vai se atrever a mexer
com um espírito das águas?
O oficial,
já com anos de vivência na função, compreendeu que estava diante de uma
patacoada e reagiu sem perder a pose.
- Olha, a
ordem do juiz é para imitir o cidadão aqui na posse do imóvel e prender quem se
opuser ao cumprimento do mandado. A entidade do além vai resistir?
O rosto da
mulher avermelhou e, os olhos faiscando, desafiou o oficial.
- Aqui
ninguém entra. E se tentar entrar eu mando para o fundo das correntezas
espirituais.
O oficial então gritou na direção da viatura, estacionada a poucos metros dali.
O oficial então gritou na direção da viatura, estacionada a poucos metros dali.
- Capitão,
chegue aqui, e traga dois pares de algemas.
Dois
policiais fardados deixaram a viatura e se aproximaram da casa. O capitão, ao
olhar a mulher, questionou o oficial.
- Mas por
que dois pares de algemas, se só tem uma pessoa?
E o
oficial, em tom solene:
- Um par é
para o senhor caboclo das correntezas, e o outro é para o “cavalo” dele, que
responde pelo nome da dona Maria dos Anzóis Pereira.
Antes,
porém, que o militar levasse a ordem a sério a mulher berrou "vão pegar o
demônio", e, junto com o caboclo das águas, desembestou na carreira,
sumindo dentro de um matagal, no final da rua.
....
(*) Nonato Reis é jornalista e escritor. A crônica acima integra o livro "Ossos do Ofício", que resgata histórias vividas por oficiais de justiça no cumprimento de mandados judiciais. Com lançamento previsto para o final do ano.
(*) Nonato Reis é jornalista e escritor. A crônica acima integra o livro "Ossos do Ofício", que resgata histórias vividas por oficiais de justiça no cumprimento de mandados judiciais. Com lançamento previsto para o final do ano.
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