terça-feira, 23 de outubro de 2018

A CRÔNICA DO DIA


HOJE É DIA DE... 



 TANCINHA, A MULHER QUE PARIU UM CÃO

Por Nonato Reis

Boato em cidade pequena do interior, sabe como é: queima e se espalha rápido que nem fogo em canavial. E isso, mesmo em um tempo em que telefone, internet e rede social ninguém nem sabia o que era. A notícia corria mesmo era de boca em boca, por meio das más e das boas línguas. Não havia quem não se intrometesse na história e dela tomasse parte, seja como autor, personagem, narrador ou simplesmente assistente. O pau corria solto, para usar um linguagem típico da Baixada Maranhense.


A notícia que acabara de sair do forno era por demais cabeluda e tinha a força destruidora de uma bomba de murrão. Tancinha, a menina-moça do coronel Idelfonso (Idelso, para os íntimos), preparada e talhada para ser uma dama do lar, embuchara.

A coisa começou com uma simples suspeita, quando ela sentira um mal súbito em plena missa dominical, com a igreja apinhada de fieis. Do nada, perdera a cor e por pouco não desmaiara.
Socorrida pelos familiares e também pelo padre Bento ao pé da sacristia, a menina logo recobrou os sentidos e tratou de banalizar o caso. “Foi só uma tontura, alguma coisa que comi e me fez mal”. Até aí, tudo bem, problemas digestivos acontecem e deles ninguém está imune. Ocorre que a coisa acabou se tornando rotina e vire e mexe Tancinha tinha um catiripapo. Passou a enjoar, vomitava do nada. Perdeu peso, os seios incharam, a barriga começou a saltar. 
Até o dia que alguém teve um estalo, compartilhou a suspeita com outro e pimba! A coisa explodiu. “Tá prenha, sim senhor! Prenhazinha da silva”.
A notícia, como se costuma dizer entre as comunidades ribeirinhas do ‘Maracu”, correu beirada, incendiou os vilarejos. O problema, por si mesmo delicado, assumia um tom ainda mais grave por se tratar de uma filha do homem mais brabo e poderoso da região.
E pior, virgem! Ou pelo menos, tida como tal. Porque na verdade Tancinha perdera o selo de castidade desde que se deitara na cama de pau d’arco da mãe com o caixeiro viajante Apolinário, o Popó.
Foi num dia em que a família fora ver o espetáculo da Esquadrilha da Fumaça, que pela primeira vez se exibia nos céus de Viana. Tancinha, virada do juízo pelo caixeiro, e cedendo aos apelos dele, inventou dor de cabeça para ficar em casa na companhia do ‘quase-namorado’. Vendo a chance de ouro de sua vida, talvez única, Popó não perdeu tempo e tratou de conduzir Tancinha ao estaleiro que, assim, aos 21 anos, deixava o círculo das donzelas e adentrava o das ‘mulheres bulidas ou mexidas’, ou, no linguajar típico da época: ‘das putas recatadas’. 
Mas disso só ela e Popó sabiam. Popó, aliás, após consumar o ato, ante a promessa de levar a dama ao altar, tratou de dar no pé e sumiu na buraqueira, deixando com Tancinha a dor e a saudade. Ela, porém, jamais esqueceria aquele sujeito elegante, de fala mansa, carinhoso até a alma, bem-falante e físico de atleta. 
No rosto Popó exibia uma cicatriz em cruz, que ele dizia ter sido herança de um duelo que travara com outro caixeiro, por dívida de jogo. Outro detalhe marcante era o nariz que, arredondado e com os orifícios enormes, mais parecia um focinho de porco.
Em pouco tempo, todo mundo já sabia da novidade e comentava abertamente, às margens do rio, no campo de futebol, nas bodegas e até nas sentinelas, menos o coronel Idelfo, que foi o último a tomar ciência do ocorrido, por meio da esposa Naná.
Com surpreendente tranquilidade, o coronel reuniu a família na sala principal da fazenda e colocou Tancinha sentada em uma cadeira no centro. “Agora debulha. Diga quem foi o autor de tamanha barbárie, para que eu possa acertar as contas com ele”.
Tacinha, branca por natureza, ficou azulada, perdeu a voz e não conseguia dizer nada. O coronel, no limite da paciência, ralhou: ‘diga!’. Suando em bicas, a voz parecendo um grunhido, soprou: “Dublan!”. Incrédulo, o velho berrou. “Dublan? Mas quem é esse malfeitor que eu nunca ouvi falar na vida?”, ao que ela completou: “Meu cachorrinho de estimação!”. 
A revelação deixou a todos atônitos, até o coronel perdeu a voz. Não podia ser! Como poderia um cachorro manter relações com uma mulher, e o pior: emprenhá-la! Seria possível? O assunto vazou e em poucas horas o povoado inteiro ficaria sabendo que Tancinha embuchara de Dublan. A família correu até o padre Bento, pediram-lhe explicação. “Deus permitiria uma coisa dessa?”. O padre, conservador até o bigode, corou, fez o sinal da cruz três vezes, mandou todos se retirarem da igreja. “Vão se embora daqui. Isso é uma blasfêmia. É coisa do demo!”. Porém recomendou à menina que rezasse 300 Pai Nossos e 500 Ave Marias. “E peça ao Senhor que tenha compaixão de ti, pobre pecadora!”.
O coronel pensou em matar o cachorro. Bastava uma bala na cabeça. Mas a questão se encerraria com a morte do cão? Concluiu que não. E se Tancinha estivesse mentindo para tentar proteger o verdadeiro criminoso? Na dúvida foi ter com o médico e compadre Abenildo, quem sabe ele tinha uma explicação correta para o caso. 
O doutor coçou a cabeça, depois falou de forma categórica. “Meu compadre Idelfo, até hoje não há um único registro na literatura médica sobre casos de hibridismo com homo sapiens”. O coronel perdeu a paciência. “E que diabo é isso, home!” O compadre explicou que hibridismo, naquele caso, seria a cria resultante do cruzamento de um humano com um animal.
O caso não desatava e o coronel já se preparava para deixar o consultório, quando o médico propôs o que lhe pareceu uma saída sensata. “Meu compadre, não faça nada agora, espere a Tancinha ter a criança, ou seja lá o que for. Se a coisa nascer com algum traço de bicho, aí se terá uma pista mais segura para o diagnóstico. Se não, é porque o pai da criança é o bicho homem”. E assim, foi.
Meses depois de espera e angústia, Tancinha dera à luz um filho macho, e de animal ou algo parecido o moleque tinha apenas o nariz, no formato de um focinho.

Do livro "A Fazenda Bacazinho" de autoria do poeta  e romancista Nonato Reis.


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