O ex-ministro da Educação
Fernando Haddad, candidato a presidente da República pelo PT, escreveu um
artigo publicado em junho de 2017, que tratou do tema que Bolsonaro explorou e
os seus seguidores exploram irresponsavelmente a exaustão, o chamado “Kit Gay”.
Bolsonaro insiste em uma fraude, como Haddad detalha. A seguir, um trecho do artigo
do ex-ministro:
Sensação
semelhante, de percepção dos próprios limites diante de uma situação que indica
maus presságios, eu tive em 2011, no Ministério da Educação, durante a crise do
chamado “kit gay”. A história toda, a começar pela expressão preconceituosa, é
um exemplo de como uma informação falsa pode ser criada (e deliberadamente
mantida) com intenções políticas nefastas – e consequências sociais que
reverberam até hoje.
A Comissão de
Direitos Humanos da Câmara, acertadamente, aprovou uma emenda de bancada ao
orçamento, designando recursos para um programa de combate à homofobia nas
escolas. O Ministério Público questionou o MEC sobre a liberação da emenda. Só
então o MEC entrou na história, solicitando a produção do material a uma ONG
especializada. No exato momento em que o material foi entregue para avaliação,
eclodiu a crise do “kit gay”.
Desde o início,
quem lia as notícias imaginava que aquela era uma iniciativa do Executivo,
quando na verdade a demanda havia sido do MP e do Legislativo. Também se
sugeriu que o material estivesse pronto e já distribuído, quando sequer havia
sido examinado. Expliquei tudo à imprensa e às bancadas evangélica e católica
do Congresso, e o mal-entendido parecia desfeito. Despreocupado, viajei no dia
25 de maio a Fortaleza para receber o título de Cidadão Cearense. Então,
durante a minha ausência de Brasília, um material de outro ministério, o da
Saúde, foi apresentado como sendo o tal “kit gay” do MEC para as escolas. Esse
outro material se destinava à prevenção de DST/Aids e tinha como público-alvo
caminhoneiros e profissionais do sexo nas estradas de rodagem – com uma
linguagem, portanto, direta e escancarada.
O deputado
Anthony Garotinho (PR-RJ) exibiu em plenário a campanha do Ministério da Saúde
dizendo que eu havia mentido no dia anterior e que as escolas de Campos dos
Goytacazes, onde a mulher dele, Rosinha Garotinho, era prefeita, já dispunham
de exemplares para distribuir aos estudantes. Aquilo virou um caldeirão.
Gilberto Carvalho, então chefe de gabinete da Presidência, me telefonou
alarmado. Eu disse: “Gilberto, pare dois segundos para pensar e se acalme.
Isso não existe. O material para as escolas ainda está na minha mesa,
não há chance de ele ter sido distribuído.”
Era,
evidentemente, uma armação, explicada inúmeras vezes para a imprensa, mas a
confusão já estava feita. E a polêmica do “kit gay” – que foi sem nunca ter
sido – estendeu-se por meses. Em junho, às vésperas da Marcha pela Família,
convocada por grupos religiosos em Brasília, recebi em meu gabinete o senador
Magno Malta (PR-ES) para conversar sobre o assunto. Em determinado momento, ele
elevou o tom e começou a me ameaçar. Disse que a Marcha ia parar na frente do
MEC, que eles iriam me constranger. Mantive o tom calmo que sempre adoto: “Mas,
senador, o senhor conhece a história, sabe que não é verdade.” Não adiantou.
Percebi, então, que aquilo não era uma questão de argumentos, mas um jogo de
forças. E eu disse, também com o tom de voz mais alto: “Então venham. Hoje à
noite eu vou rezar um Pai-Nosso e amanhã nós vamos ver qual Deus vai
prevalecer, o da mentira ou o da verdade.”
O senador parou,
abriu um sorriso e pegou na minha mão: “Você é um homem de Deus. Se acredita
n’Ele, eu acredito em você.”
Voltei a esse
episódio já relativamente antigo porque ele me parece exprimir muito bem um
fenômeno que o ultrapassa. Em um artigo recente para a revista
nova-iorquina Dissent, a filósofa norte-americana Nancy Fraser discutiu a
eleição de Donald Trump e o que chamou de “derrota do neoliberalismo progressista”.
No texto, Fraser mostra como se constituiu nos Estados Unidos a disputa entre
duas modalidades de direita: o neoliberalismo progressista dos governos Clinton
e Obama e o protofascismo de Trump, com seu discurso protecionista na economia
e seu conservadorismo regressivo em relação aos costumes e direitos civis.
Pode-se discutir se é correto enquadrar Obama no campo neoliberal, mas o que
importa preservar do argumento da autora, nesse embate, é que a grande vantagem
do neoliberalismo americano, que era o diálogo com as minorias – LGBT,
mulheres, negros e imigrantes –, se perdeu.
O que vimos no
Brasil dos últimos anos foi algo um pouco diferente: essas duas modalidades de
direita em boa medida se fundiram, de modo que mesmo nossa direita neoliberal
passou a cultivar a intolerância. A vitória socioeconômica do projeto do PT até
2013 foi tão acachapante – crescimento com distribuição de renda e ampliação de
serviços públicos – que sobrou muito pouco para a versão civilizada da direita
tucana. Ela não podia mais se dar ao luxo de ser neoliberal e progressista.
Para enfrentar a nova realidade, os tucanos passaram a incorporar a seu
discurso elementos do pior conservadorismo.
Temas regressivos
foram insuflados no debate nacional. A campanha de José Serra à Presidência em
2010 foi um momento importante dessa inflexão tucana. Embora talvez fosse o
desejo íntimo de alguém como o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, o PSDB
não conseguiu se transformar na versão brasileira da agenda democrata
norte-americana. Pelo contrário, ao radicalizar o discurso conservador, o
partido revolveu o campo político de onde floresceu a extrema direita no
Brasil. Quem abriu a caixa de Pandora de onde saiu o presidenciável Jair
Bolsonaro foi o tucanato. Embora essa agenda pudesse vir à tona em algum
momento, foram os tucanos que a legitimaram. Um equívoco histórico. Quando,
pela mudança de conjuntura, se tenta abdicar desse ideário, isso já não é mais
possível, pois logo aparece alguém para ocupar o espaço criado. Foi exatamente
o que aconteceu: a extrema direita desgarrou e agora quer tudo – a agenda
tucana e muito mais.
Um movimento
semelhante ocorreu com a imprensa. Curiosamente, o veículo que mais respaldou
essa pauta foi aquele de quem menos se esperava uma aproximação com o obscurantismo:
o jornal Folha de S.Paulo. Sob o manto moderno do pluralismo, uma pretensa
marca do jornal, a Folha legitimou, tornou palatável e deu ares de
seriedade a uma agenda para lá de regressiva. Adotando inclusive a expressão
“kit gay”, criada pela bancada evangélica do Congresso, o jornal deu dignidade
a uma abordagem que contribuiu para que o debate sobre direitos civis atrasasse
cinquenta anos no país.
Embora tenha
desandado na cobertura noticiosa, a Folha continua utilizando o
espaço dos editoriais para se apresentar como uma espécie de vanguarda da
modernidade. O expediente tornou-se tão incongruente com as opções do
noticiário que em determinado momento a Folha precisou alardear em
peças publicitárias, no próprio jornal e na tevê, aquilo que seria seu
posicionamento oficial sobre temas mais delicados. Vejo isso como um caso
singular de cinismo que maquiava o embarque do jornal numa espécie de
“neo-liberalismo regressivo”.
Como
se vê, são incautos e usam de má fé quem propaga inverdades!
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