HOJE É DIA
DE...
A MORTE
DENTRO DE UM PUTEIRO
(*) Nonato Reis
Na Viana dos anos 80, dominada ainda pelo
isolamento em relação à capital e demais regiões do Estado, as diversões
masculinas começavam no Areal (espécie de praia de água doce nos limites da
cidade com o lago) e terminavam no puteiro, de preferência o "Luz da
Serra”, que ficava para as bandas do antigo Campo da Aviação, e era frequentado
por ricos e pobres, playboys e matutos.
O puteiro era, por assim dizer, o lugar mais
democrático de Viana, aberto a todos, indistintamente, bastando apenas ter
alguns trocados no bolso, que dessem para tomar uma cerveja e pagar o aluguel
de um quarto rústico por algumas horas.
Eu, apesar da alta voltagem dos hormônios e da
resistência das chamadas “moças de família” em deitar com o namorado, mantinha
um pé atrás com esses lugares lúgubres, pelo receio de contrair as temidas
doenças venéreas, que nessa época vicejavam nos ambientes de luz vermelha. Mas
a caravana segue os cães, e, não raro, acabava por bater o ponto no Luz da Serra,
nem que fosse apenas para “tomar uma” e jogar conversa fora com parentes e
amigos, que eu via “de quando em quando”, nas folgas da faculdade.
Chegara de São Luís numa sexta à noite e,
mochila nas costas, fui direto para o Areal, onde havia um circo em cartaz. No
interior, o circo, seja lá qual for, é uma atração irresistível. A cidade toda
acorre para a grande lona onde acontecem os espetáculos.
Entrei e dei com as arquibancadas lotadas. Era
gente que não cabia mais e eu decidi ficar em pé no vão entre uma fileira e
outra, observando a cena do trapézio, na qual alguns artistas se revezavam na
arte do equilibrismo.
Não demorou e alguém tocou o meu braço,
quebrando-me a concentração. Olhei do lado e dei de cara com Zé da Onça, um
primo que eu tenho como irmão.
Após os cumprimentos de praxe, marcamos
encontro no Luz da Serra, logo após a sessão do circo. “A gente toma uma gelada
e conversa com as meninas”, propôs, piscando um olho, cujo código me pareceu
claro.
Eu estava cansado de uma penosa viagem por entre
asfalto, piçarra, buracos e lama, o corpo todo pedia sossego, mas não havia
como recusar um convite daquele, após quase um ano sem ver o primo.
O espetáculo terminou ao som das velhas
marchinhas circenses, a multidão foi se dispersando e eu descobri que, além de
Zé da Onça, havia mais cinco primos, entre eles Sebastião Xoxota, parceiro de
incursões pelos sítios dos tios, roubando frutas em noites de lua, no
Ibacazinho. “Tião, o que você tem feito de bom?”, quis saber, ao que ele
encolheu os ombros, como quem não tem nada de interessante para contar. “O
letrado aqui é tu. Eu é que quero ouvir as tuas histórias”. Rimos.
Tião conhecia a fama de brabo de Zé da Onça.
Sobre ele corriam histórias que eu nunca presenciara, e por isso as tratava
como “conversa fiada”. Por exemplo, diziam que, sob efeito do álcool, o sujeito
pacato e de sorriso “preso” se transformava numa fera enjaulada e indomável.
Nesse dia eu decidi pagar para ver e me dei mal.
Entramos no cabaré quase às escuras. Apenas
duas lâmpadas toscas iluminavam fracamente o ambiente. Havia pouca gente no
salão e escolhemos uma mesa próxima do bar, por razões óbvias.
Veio a primeira garrafa, e depois a segunda e a
terceira. Um certo tempo depois, a conversa corria animada, sobre casos que
povoavam as nossas infâncias no Ibacazinho.
Ao meu lado, Tião Xoxota falou-me ao ouvido:
- Tu tá vendo esse sujeito que atende a nossa
mesa?
Olhei na direção indicada por Tião e vi um
homem alto, branquelo e barrigudo, que usava uma camisa branca abotoada de
baixo para cima até o meio da enorme barriga.
Fiz um sinal de cabeça e Tião completou.
- Todo mundo tem medo dele. Dizem que já matou
uma penca de gente, mas nunca ficou provado nada. Olha o tamanho do facão que
ele usa na cintura.
Olhei e senti um frio na espinha. De tão grande
o facão quase tocava o chão de cimento bruto. Pensei que não era nada usual
alguém, trabalhando como garçom, portar uma arma daquela. Olhei para Zé da
Onça, àquela altura já com os olhos vermelhos, que parecia sorrir até com as
paredes.
Achei que era hora de ir embora, e dei o aviso.
“Gente, vamos capar o gato. Tô morrendo de sono”.
Todo mundo concordou e Zé pediu a conta ao
garçom que, após alguns rabiscos num pedaço de papel de embrulho, entregou a
ele. Zé olhou a nota e, chamando o garçom com um assobio, pediu explicações
sobre o valor.
- O que é isto? Nós tomamos 18 cervejas e tu
anotou aqui 24? Cadê as outras que eu não bebi?
O homem então esclareceu que as seis cervejas
adicionais se referiam a uma conta atrasada dele com o estabelecimento. A
reação do primo fez até o chão estremecer.
- Ladrão sem-vergonha. Safado ordinário, tu tá querendo me roubar com a cara mais lavada?
- Ladrão sem-vergonha. Safado ordinário, tu tá querendo me roubar com a cara mais lavada?
Pego de surpresa, o homem ficou ainda mais
branco e só conseguia rosnar. Eu, prevendo o desfecho daquela cena, levantei da
mesa e pedi ao sujeito que não levasse aquilo a sério, o primo estava bêbado,
não sabia o que dizia. O homem fez um gesto de compreensão, mas o primo não
parava de ofendê-lo com os piores adjetivos.
Uma hora o garçon perdeu a paciência e levou a
mão ao facão, mas eu, mais rápido, agarrei-me ao braço dele, impedindo que
sacasse a arma. E ficamos por não sei quanto tempo naquele jogo macabro, ele
tentando puxar o facão e eu o impedindo, praticamente pendurado ao braço
dele.
Até que um outro sujeito mau encarado, também
armado de facão, adentrou o salão e raspou a arma no chão, fazendo sair faíscas
para todo lado. Eu pensei que nada mais havia que fazer, estávamos perdidos,
mas o estranho se dirigiu a Zé da Onça, em tom familiar.
- Meu cumpade, o que esse patife quer contigo?
- Meu cumpade, o que esse patife quer contigo?
E Zé, os olhos vermelhos feito pimenta
malagueta:
- Quer me roubar, cumpade. É um ladrão
ordinário.
O homem
pegou o garçom pelo colarinho e, facão em riste, arrastou-o até o bar,
cobrando-lhe explicações.
Eu
aproveite a “deixa”, abracei meu primo pela cintura e o carreguei como quem
conduz um saco de lixo – não sei com que força – para fora do puteiro.
“Pra lá tu
não voltas mais. Só se passar por cima de mim”. Zé lutava e se debatia,
tentando se livrar, no que eu invocava a razão.
- Ficou
louco? Onde já se viu chamar o cara de ladrão, um criminoso com não sei quantas
mortes nas costas, você podia ser mais um defunto, e me levar junto.
O primo,
já mais calmo, olhou-me nos olhos e respondeu, o dedo indicador gesticulando,
como se ditasse uma sentença. “Ele teve foi sorte que eu não trouxe o meu
trabuco. A esta hora ele estaria duro naquele salão”.
(*) Nonato Reis é jornalista, poeta, e romancista nascido em Viana-MA.
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