domingo, 17 de dezembro de 2017

A CRÔNICA DO DIA

HOJE É DIA DE... 

(*) Nonato Reis

AS FLORES, O CRUCIFIXO E A DEFUNTA

Imagem ilustrativa
Esse negócio de usar flores em defunto vem de longe. Conta-se que há 14 mil anos, na região do Mar Mediterrâneos, já se ornavam os cadáveres com pétalas e ramos de plantas. No México, primeiramente, e no restante da América Latina, aí incluso o Brasil, é costume ver cravos de defunto em volta do morto ou coroas de flores ao lado dos esquifes, durante os funerais.
Como surgiu isso, e por que se recorre a flores nas cerimônias mortuárias ninguém sabe dizer ao certo. Os cientistas desconfiam que a prática se tenha originado da necessidade de repelir germes e insetos sobre os cadáveres. Sabe-se por exemplo que o Cravo de Defunto é um repelente natural contra germes que atacam e causam danos às raízes das plantas. 
Outra explicação seria de ordem social. As flores, sabe-se hoje, possuem substâncias que provocam respostas emocionais positivas nos seres humanos.
Também simbolizam o amor e a delicadeza. Assim, seu uso nos velórios pode estar relacionado à tentativa de exprimir o carinho e a ternura daqueles que ficaram pelos entes que ascenderam ao reino do Além.
Eu nunca vi a menor graça em decorar morto com flores. Soa-me contraproducente misturar uma coisa tão sublime com algo decomposto. Sei que o simbolismo se dá numa esfera metafísica, para demonstrar a dor da perda e também aquilo que o ser humano tem de mais precioso. Mesmo assim, não consigo digerir a imagem de flores ao redor de cadáver.
Mas uma coisa puxa outra, e agora ocorre-me a lembrança de um fato que acontecera muito tempo atrás no Ibacazinho. Uma senhora falecera de repente e, como se sabe, a morte costuma deixar as pessoas em estado de choque, ainda mais quando se trata de um desenlace súbito. 
Foi um berreiro e um chororô dos diabos. Aqui e ali um parente tinha crises de histeria e acabava por desmaiar à beira do caixão, o que aumentava o sufoco dos mais calmos, encarregados de manter a situação sob controle.
(Imagem ilustrativa da web)
O drama maior era a de uma das filhas da falecida, que a todo momento se jogava sobre o caixão e ameaçava acabar com a própria vida. Aos prantos, dizia que a existência não tinha mais graça e, tão logo a defunta baixasse os “sete palmos”, cometeria o suicídio. “Vou me matar, não quero mais viver. Acabou pra mim!”, repetia a todo momento, ao que os parentes e amigos a abraçavam e tentavam fazê-la ver que a coisa não era bem assim. “Você tem marido e filhos. Pense na sua família. A vida continua!”, argumentavam.
Para demonstrar a sua determinação em cometer o ato extremo, arrancou do pescoço um crucifixo que recebera da mãe ao fazer 15 anos, com a promessa de carregá-lo até o último dia de vida, e o arremessou dentro do caixão da falecida. “Leve consigo, minha mãe, ele não me serve mais para nada”. 
Nisso, uma prima, postada ao lado dela, segredou-lhe ao ouvido: “Você sabia que o morto vem buscar aqueles que jogam seus pertences dentro do caixão?”.
Na mesma hora, a mulher em prantos parou de chorar e arregalou os olhos. “Isso é sério?” Ao que a outra confirmou. “Serinho da silva. Todos que fizeram isso se deram mal. Não restou nenhum para contar história”.
A outra então se recompôs, esfregou os olhos lacrimosos com as mãos, assoou o nariz, e ponderou: “Pensando melhor, não ficaria bem abrir mão de uma joia que a minha mãe me deu com tanto carinho. Melhor eu pegar de volta”. E foi afastando as flores sobre a defunta, à procura do crucifixo, porém sem encontrar.
Apelou aos presentes: “Ajudem-me, por favor! É uma peça de valor histórico, vale uma vida”. E danaram-se a remover ramos e coroas de flores. Em vão. O colar sumira como que por encanto. 

No desespero, a mulher arrancou o cadáver da mãe do caixão e o jogou de lado, como se fosse uma coisa qualquer. Depois retirou as vestes da morta e a deixou pelada. Foi então que o crucifixo ressurgiu debaixo do sovaco da defunta. Brandindo-o no ar como a um troféu, ralhou, os olhos vermelhos de raiva a fitar a morta. “A senhora queria me levar junto, não é? Pois vá sozinha, que eu ainda não quero ir”.
(*) Nonato Reis, poeta, romancista, crônista e jornalista nascido em Viana-MA.


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