HOJE É DIA
DE...
(*)
Nonato Reis
AS
FLORES, O CRUCIFIXO E A DEFUNTA
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Imagem ilustrativa |
Esse negócio de usar flores em defunto vem de longe. Conta-se
que há 14 mil anos, na região do Mar Mediterrâneos, já se ornavam os cadáveres
com pétalas e ramos de plantas. No México, primeiramente, e no restante da
América Latina, aí incluso o Brasil, é costume ver cravos de defunto em volta
do morto ou coroas de flores ao lado dos esquifes, durante os funerais.
Como surgiu isso, e por que se
recorre a flores nas cerimônias mortuárias ninguém sabe dizer ao certo. Os
cientistas desconfiam que a prática se tenha originado da necessidade de
repelir germes e insetos sobre os cadáveres. Sabe-se por exemplo que o Cravo de
Defunto é um repelente natural contra germes que atacam e causam danos às
raízes das plantas.
Outra explicação seria de ordem
social. As flores, sabe-se hoje, possuem substâncias que provocam respostas
emocionais positivas nos seres humanos.
Também simbolizam o amor e a
delicadeza. Assim, seu uso nos velórios pode estar relacionado à tentativa de
exprimir o carinho e a ternura daqueles que ficaram pelos entes que ascenderam
ao reino do Além.
Eu nunca vi a menor graça em
decorar morto com flores. Soa-me contraproducente misturar uma coisa tão
sublime com algo decomposto. Sei que o simbolismo se dá numa esfera metafísica,
para demonstrar a dor da perda e também aquilo que o ser humano tem de mais
precioso. Mesmo assim, não consigo digerir a imagem de flores ao redor de
cadáver.
Mas uma coisa puxa outra, e agora
ocorre-me a lembrança de um fato que acontecera muito tempo atrás no
Ibacazinho. Uma senhora falecera de repente e, como se sabe, a morte costuma
deixar as pessoas em estado de choque, ainda mais quando se trata de um
desenlace súbito.
Foi um berreiro e um chororô dos
diabos. Aqui e ali um parente tinha crises de histeria e acabava por desmaiar à
beira do caixão, o que aumentava o sufoco dos mais calmos, encarregados de
manter a situação sob controle.
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(Imagem ilustrativa da web) |
O drama maior era a de uma das
filhas da falecida, que a todo momento se jogava sobre o caixão e ameaçava
acabar com a própria vida. Aos prantos, dizia que a existência não tinha mais
graça e, tão logo a defunta baixasse os “sete palmos”, cometeria o suicídio.
“Vou me matar, não quero mais viver. Acabou pra mim!”, repetia a todo momento,
ao que os parentes e amigos a abraçavam e tentavam fazê-la ver que a coisa não
era bem assim. “Você tem marido e filhos. Pense na sua família. A vida
continua!”, argumentavam.
Para demonstrar a sua determinação em cometer o ato extremo,
arrancou do pescoço um crucifixo que recebera da mãe ao fazer 15 anos, com a promessa
de carregá-lo até o último dia de vida, e o arremessou dentro do caixão da
falecida. “Leve consigo, minha mãe, ele não me serve mais para nada”.
Nisso, uma prima, postada ao lado
dela, segredou-lhe ao ouvido: “Você sabia que o morto vem buscar aqueles que
jogam seus pertences dentro do caixão?”.
Na mesma hora, a mulher em prantos parou de chorar e arregalou os olhos. “Isso é sério?” Ao que a outra confirmou. “Serinho da silva. Todos que fizeram isso se deram mal. Não restou nenhum para contar história”.
Na mesma hora, a mulher em prantos parou de chorar e arregalou os olhos. “Isso é sério?” Ao que a outra confirmou. “Serinho da silva. Todos que fizeram isso se deram mal. Não restou nenhum para contar história”.
A outra então se recompôs, esfregou os olhos lacrimosos com as
mãos, assoou o nariz, e ponderou: “Pensando melhor, não ficaria bem abrir mão
de uma joia que a minha mãe me deu com tanto carinho. Melhor eu pegar de
volta”. E foi afastando as flores sobre a defunta, à procura do crucifixo,
porém sem encontrar.
Apelou aos presentes: “Ajudem-me, por favor! É uma peça de valor histórico,
vale uma vida”. E danaram-se a remover ramos e coroas de flores. Em vão. O
colar sumira como que por encanto.
No
desespero, a mulher arrancou o cadáver da mãe do caixão e o jogou de lado, como
se fosse uma coisa qualquer. Depois retirou as vestes da morta e a deixou
pelada. Foi então que o crucifixo ressurgiu debaixo do sovaco da defunta.
Brandindo-o no ar como a um troféu, ralhou, os olhos vermelhos de raiva a fitar
a morta. “A senhora queria me levar junto, não é? Pois vá sozinha, que eu ainda
não quero ir”.
(*) Nonato Reis, poeta, romancista, crônista e jornalista nascido em Viana-MA.
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