quinta-feira, 30 de novembro de 2017

A CRÕNICA DO DIA

HOJE É DIA DE... 


A PAIXÃO QUE GUARDEI DENTRO DE MIM

(*) Nonato Reis

Quem nunca se apaixonou só passou pela vida - não soube o que é “andar de corda de rastro” (expressão típica do linguajar da Baixada, que significa “caminhar sem rumo, seguir sem razão) atrás de alguém, fazer dele a própria razão de existir. 
A paixão é essa força descomunal da natureza até hoje mal explicada pela ciência, capaz de subverter os valores de uma pessoa e fazer com que ela passe a agir, guiada pura e simplesmente por impulsos de emoção. Parodiando Paulinho da Viola, é como dizer que um rio passou diante dos olhos e o coração, maravilhado, se deixou levar.
Cá entre nós, como é bom se sentir abatido por uma certeira flecha de Cupido! Carlos Heitor Cony, um dos maiores escritores da atualidade, certa vez em entrevista a Jô Soares, disse, aos 80 anos, que apaixonar-se é a melhor coisa da vida. Para ele, a paixão, ao contrário do amor, é algo imprevisível, que induz a viver experiências inéditas.
O amor é banal; a paixão, antológica, ou patológica? – queima o corpo e a alma, reformula conceitos, obriga a fazer coisas inimagináveis. Como andar de madrugada pelas ruas e conversar com as estrelas, sorrir por nada, oferecer flores a um desconhecido, beijar a mulher do próximo.
Em outras palavras, a paixão tira a pessoa do pino e a revira do avesso. Joga por terra códigos de conduta e manuais de boas maneiras. Transforma o errado em certo; o lógico em irracional. Num passe de mágica faz você ascender ao céu e também descer ao inferno.
A doutrina espírita classifica a paixão como um atributo importante do espírito, que pode carregá-lo ao infortúnio, mas também guiá-lo à senda do bem, se devidamente canalizada para o empreendimento das boas ações.
Uma coisa é certa: paixão incendeia e enlouquece. Cony contou a Jô a história de um sujeito que, febril de amor por uma menina que vivia em um apartamento na Avenida Atlântica, no Rio, subia várias vezes por dia no pé de uma árvore, que ficava de frente para o prédio dela, só para vê-la se movimentar pela casa. 
A garota sequer o conhecia, nem de longe imaginava a torrente de sentimentos que fazia brotar no sangue do rapaz, mas para ele, olhá-la, mesmo a distância, como anônimo, já o deixava com a alma tomada de encantamento.
Paixão deixa o cara maluco aos olhos dos outros. Eu, quando vim estudar em São Luís, na escola Gonçalves Dias, no Apeadouro, onde cursei o ensino médio, conheci uma garota, que me deixou alucinado. Chamava-se Nonata Rodrigues, e logo no primeiro dia de aula, ao vê-la sorrir daquele jeito todo especial, foi como cair na armadilha de um feixe de luz. 
Era morena, alta, os olhos castanhos amendoados, corpo esguio, absurdamente linda.
O professor instou os alunos a se apresentarem e, ao revelar o meu nome, ela olhou-me surpresa e depois brincou comigo: “formamos um par pelo nome: Nonato e Nonata”. Eu sorri constrangido e, paralisado de timidez, perdi a fala. Os dias se passaram e, vendo o assédio dos colegas sobre ela, compreendi que não tinha a menor chance de qualquer aproximação. Mas ela, mesmo a distância, sempre dava um jeito de me olhar e sorrir, no que eu me sentia como que ingressando numa esfera mágica.
Descobri que morava na Aurora, ao lado de uma parada de ônibus, relativamente próximo da minha casa, que ficava na Cohab. Todos os dias pela manhã caminhava a pé até lá e, protegido por trás do tronco de uma mangueira, passava horas de tocaia, ávido por uma aparição dela no terraço, que tinha o significado de um prêmio. 
Uma vez descobri que ela iria fazer compras na Rua Grande. Peguei o ônibus bem cedo e fiquei numa esquina da rua, aguardando o momento dela cruzar o local. Depois de um tempo de espera que me pareceu eterno, finalmente apareceu. Trajava um vestido estampado de vermelho, sandálias sem salto, bolsa tiracolo. Nunca vi mais linda. Foi como antever a própria imagem do paraíso.
E por meses vivi aquele idílio e acreditei que dele jamais me libertaria, até o dia que ela veio até mim e anunciou que deixaria a escola. Quis saber por que, os olhos já tomados de tristeza. “Vou morar no Rio, tenho uma tia que mora no Leblon e quer que eu vá estudar lá”. Era coisa decidida. Até a passagem já havia comprado. Disse-me o dia e a hora em que viajaria, e eu entendi que aquilo podia ser um convite para uma última despedida.
Fui até o terminal rodoviário da Alemanha e por sorte a encontrei quando já ia entrar no ônibus da empresa Itapemirim. Ao me ver, sorriu, entre surpresa e feliz. Abraçou-me como se quisesse me guardar consigo e depois falou olhando nos olhos. “Te encontrar aqui foi o maior presente que poderia receber. Muito obrigada”. 
Os dias se passaram arrastados. Uma dor indômita parecia espicaçar-me a alma. Meses depois, recebi uma carta dela, que de tão extensa, mais parecia um jornal. Entre outras coisas, uma revelação que me deixou sem chão. “Você foi a melhor coisa que eu conheci no GD (iniciais de Gonçalves Dias), e o primeiro amor da minha vida”.

(*) Nonato Reis é poeta, cronista e jornalista.


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