Japeçoca |
Há
muito queria escrever sobre tudo que tinha na minha terra e hoje não tem mais,
ou é muito difícil de se encontrar. E a penca de coisas é enorme. Para tanto
tive de fazer uma verdadeira regressão psicológica. Um mergulho no tempo. E
certamente não mencionarei tudo que o tempo guardou no esquecimento. Mas
procurarei ser fiel às minhas lembranças: as veredas por onde andei, os frutos
que saboreei e do muito que preencheu os dourados dias da minha infância.
Retrocedi
no tempo e me vi nos meus dias de férias na casa de meus avós maternos no
Boticário, - uma reentrância de campo onde se espalhava um extenso tapete verde
de capim de marreca. Às primeiras chuvas o campo se enchia e logo vinham as
vegetações imergindo do solo submerso. Eram as orelhas de veado, os pajés, as
vitórias-régias, as gapeuas, os guarimãs que logo recebiam as primeiras japeçocas
em seus acasalamentos e berçário. Nas primeiras horas daquelas manhãs ou nos
fins daquelas tardes ouvia-se o cantar delas que cruzavam o estreito ressaco de
enseada em direção à casa de Seu Doquinha ou lá pras bandas do Urucu. Era comum
se vê singrando os campos nunca cercados, pessoas que faziam daquele habitat o
seu próprio sustento e meio. As canoas e os marás eram utensílios de uso de
todos que por ali moravam.
A parte
alta de terra começava quase sempre por um rosário de quirizeiros, cujos frutos
perfumavam o ambiente em suas épocas. Os tarumãs e as ingás também ganhavam
aspecto em meio a plantação nativa. Mais no alto sobressaiam-se as casas dos
moradores com seus quintais e roças.
A casa
do meu avô Heráclito ficava em uma parte mais alta. À frente, um terreiro
sempre limpo onde pastavam os animais e onde quase sempre era improvisado um
campinho de futebol. Do lado a velha “casa-do-forno”. Mais para a direita
ficava a casa de Seu José Castro, enquanto para o lado esquerdo morava o
ranzinza Seu Zé Costa. Meu avô, de cuja lembrança me foge à memória, era um
senhor severo, daqueles que empenhavam a palavra como a honra maior de um
homem. Minha avó, Andrelina – a quem nós chamávamos carinhosamente de Delica -
era extremamente dócil. Tinha nos seus pequenos olhos o profundo de um
azul-mar. Era ela quem nos acolhia, quando das travessuras, do relho que era
anunciado e quase sempre cumprido.
Bico-de-brasa |
Afora a
casa, quase sempre se tinha um poço no quintal, além, de uma sentina, um
chiqueiro, um galinheiro e uma estrebaria. A primeira parte do quintal era
quase sempre constituído de algumas árvores frutíferas, tais como, limoeiros,
laranjeiras, tanjarineiras, algumas bananeiras e mangueiras. Sobressaia-se
também um jirau e uma armação de paus que, fincados no chão, se cruzavam em xis
para o suporte de canteiros suspensos, onde se plantavam as ervas e os temperos
caseiros. Muito difícil vê-se quintal assim hoje em dia.
Do lado
da estrada que vinha até a casa de meu avô uma frondosa mangueira nos
presenteava com uma espécie rara de manga: a sapatinho. Confesso que nunca vi
em outro lugar, acho que era o último exemplar. Era um tipo pequena, mas de um
sabor agridoce sem igual. Era a preferida dos bezerros que costumavam por ali
pernoitarem. Outras grandes árvores também compunham a beleza ímpar daquele
lugar. Nelas costumavam se ver exemplares de tucanos, ainda que raros. Mas eram
comuns naqueles tempos os bicos-de-brasa, os japis – estes tinham na grande
árvore seus ninhos bem trançados que balançavam ao sabor do vento matinal. Por
ali também visitavam as rolinhas “fogo-pagô”, e as pipirinhas pardas e azuis.
Nas roças, nos arrozais, faziam algazarra os curiós, caboquinhos e bigodes.
Todos livres, leves e soltos a grazinarem suas sinfonias nas manhãs de minha
infância.
Entre
as astúcias dos meninos daqueles tempos, uma era imprescindível. Menino que se
prezasse valente, astuto e traquina, tinha que ter uma baladeira, uma cordinha,
ou um pequeno cabresto, afim de campear os carneiros que pastavam soltos nos
campos e capoeiras. Os machos nos serviam de montaria, enquanto as fêmeas quase
sempre tinham outras utilidades.
Na
volta pra casa, exceto as responsabilidades de ir para o Grupo Escolar e para a
aula particular – coisa que sempre fomos obrigados a fazer, eu, meus irmãos e
muitos da minha época – na casa de Dona Ubaldina, a vida seguia seu curso
normal de menino. Uma pelada nos campinhos improvisados, o jogo de bolinhas, a
bola de meia, o dinheiro de carteira de cigarros, os chevrolets feitos de latas
de sardinhas com pneus de rolhas de vidros de penicilina, além de algumas
tarefas caseiras, como o recolhimento crepuscular dos animas e o agasalhar de
algumas poucas criações. Isto era muito comum nas famílias da época. Algumas
vezes, em tempos já mais estios, os animais se afastavam pra mais longe e quase
sempre não retornavam para casa no cair da tarde. Era certo que no dia seguinte
tinha-se que ir atrás. O rumo era o Arrebenta, o Cazumba, o Jamari e o
Candonga. As vezes se tinha êxito, mas quando não, a busca se repetia no dia seguinte.
Pipira azul |
Nestas
andanças por entre as capoeiras, uma fartura de frutos do mato sempre apareciam
do nada, como se quisessem nos encantar com os seus sabores silvestres. Eram
maracujazinhos-do-mato, murtas, goiabas-araçás, maria-pretinhas, cauaçus e os
deliciosos tucuns-verdes. As amejubas eram raras, mas com faro apurado podia se
achar. Das palmeiras diversas e em seu tempo também se achavam as macaúbas e os
marajás. Nos campos, os bandos de graúnas-de-peito vermelho faziam seu balé de
cores e cantos. Tudo ali existia naquele tempo diante dos nossos olhos... Hoje, quase nunca mais se tem ou se vê essas
maravilhas do interior.
A busca
pelos animais de casa me rendia um prazer imensurável de liberdade e
conhecimento. Em algumas vezes, eu, perdido entre as guloseimas do mato,
esquecia até da razão de estar naquelas andanças, enquanto o burro e o cavalo
faziam o caminho de volta pra casa e chegavam primeiro do que eu, me permitindo
às vezes uma pisa pela vadiagem.
Já na
boca da noite, era preciso tomar o banho às pressas, antes que os caburés
começassem seu canto noturno. Morria de medo. Precisava estar preparado para
ouvir as histórias de Dona Palica, que entre uma cachimbada e outra, contava
pra a meninada da redondeza, as histórias de reis e rainhas de um reino
distante, bem como as dos bichos, em especial as de Coelho e Tia Onça, as que
mais me encantavam.
Assim caminhava
a noite. A lua quase que constante nos céus daqueles tempos, nos convidada para
as brincadeiras de “cair no poço”. Chegava a hora de dormir. O pai-nosso, a
Ave-Maria nos guardavam e nos protegiam. E assim embalávamos nossos dias na
pureza da vida.
Hoje
tudo isso é filme na minha lembrança que um dia vivi e que o tempo não me deixa
viver outra vez.