Por Osmar Gomes dos Santos
O ano era
1970. Em uma pequena embarcação, na companhia de minha mãe, deixei minha amada
Enseada Grande, povoado de Cajari, rumo a Cidade de Penalva. Lá chegando,
rumamos, agora já na Lancha Ribamar, para a capital em busca de uma vida
melhor. Foram dois dias e uma noite navegando águas nem sempre calmas, mas a
todo instante transbordando de incertezas sobre o que viria dali por diante.
Na travessia
faltava de tudo, mal tínhamos o básico para suportar aquela viagem e até as
roupas eram escassas. Meus pés descalços tocaram o chão frio desta cidade em
uma noite de chuva e fortes ventos que faziam meu franzino corpo tremer. A cada
rajada o arrepio tomava conta de mim e uma sensação de mil facas
atravessando-me a carne me fazia chorar. Mas chegamos.
Cá na
capital estávamos. Ao aportar, meus irmãos, que aqui já residiam, nos
aguardavam na rampa Campos Melo, na Avenida Beira Mar. Além de comida,
obviamente, eu desejava avidamente uma roupa seca e uma cama quente para me
aquecer. Partimos rumo a nosso destino, mas ao chegar a esperança deu lugar a
uma espécie de desilusão, deveras passageira.
O nosso
cartão de visita denotava que nossa trajetória não seria das mais fáceis na
nova terra. Um abrigo de restos reaproveitados de madeira, “estaqueadas” sobre
a maré, na parte baixa do Bairro São Francisco, passou a ser o nosso novo lar.
De engraçada nada tinha. Nem teto, nem chão, nem nada. Dormir na rede nem
pensar, pois as paredes não iriam aguentar. Mas ali tinha esmero… Ah sim! O
esmero afetuoso da minha mãe e a união entre os irmãos nos garantia a vaga
esperança de dias melhores.
Ali
compartilhamos bons momentos em família, a exemplo daquela primeira refeição,
um mexido de ovos de galinha caipira com farinha d’água, o pouco alimento
trazido na viagem. Mas também muitas desventuras, que temíamos resultar em um
acontecimento mais grave. A conhecida maré de lua, de tão alta, era um dos
nossos maiores pesadelos.
Nessa mesma
região, às margens da atualmente Avenida Ferreira Gullar, cresci e tomei
consciência do empoderamento que o conhecimento nos possibilita. Decidi que
tínhamos que nos unir para reivindicar melhorias, momento em que conseguimos
fundar, ali, a associação dos palafitados, da qual fui seu primeiro presidente com
apenas 16 anos de idade. Nossa luta deu frutos e as palafitas deram lugar a
casas de tijolos e telhas, ruas urbanizadas e ao hoje denominado Residencial
Ana Jansen, localizado por trás do campo de futebol “Beira Rio”, do São
Francisco.
Lembro do
sorriso no rosto de cada vizinho, da alegria no olhar de cada colega ao poder
adentrar em uma casa de alvenaria, uma cobertura de telhas, do pisar em uma rua
asfaltada. Abrir uma torneira e dela jorrar água potável para uso diário, o
banho que já não era de cuia, mas de um bom chuveiro em um banheiro decente,
cujas necessidades já não eram mais feitas por um pequeno buraco sobre a maré.
Mas, ao
longo das últimas duas décadas, o que verificamos foi que aquele tipo de
ocupação irregular voltou a crescer naquela região do São Francisco. Por anos
transitei pela Avenida Beira Mar e cruzei a Ponte José Sarney tendo minhas
memórias resgatadas por um cenário que nem de longe representava nossos belos
cartões postais.
Mais uma vez
lá estavam, encravadas sobre a maré, dezenas de palafitas. Dezenas de famílias,
centenas de vidas que só esperavam por um pouco de dignidade. Não tinha como
não rememorar aqueles tempos difíceis de criança e adolescente. As lembranças
insistiam em me transportar para uma infância onde faltava todo tipo de serviço
básico, tal como lazer, educação, saúde, esporte, cultura, saneamento. Vivia-se
para o trabalho e para o estudo, certamente nessa ordem.
Assim como
naquela década de 1980, a esperança para essa região mais uma vez vem do poder
público. Muito já foi feito nas duas últimas décadas, e mais recentemente,
escolas foram reformadas, Academias e praças de esporte ao ar livre, estádio de
futebol, eco ponto, etc., foram construídos, e bem recente foi dada a largada
para o grande trabalho de reurbanização na região com o chamado PAC Ponta do
São Francisco, com investimentos de quase R$ 8.000.000,00 (oito milhões de
reais), além de um condomínio residencial prestes a ser entregue.
Ao voltar
meu olhar para toda essa parte baixa do São Francisco a emoção transborda o
coração. Viajo no tempo em que as mesmas melhorias me fizeram chorar, quando
pela primeira vez tivemos uma casa de tijolo e cimento, coberta com telhas.
Sou uma
pessoa que guarda e valoriza as origens, razão pela qual sempre mantive contato
com amigos e familiares que ainda residem no Bairro São Francisco. Após a
assinatura da execução das obras, em momento de grande festividade para
milhares de pessoas beneficiadas, aquela mesma esperança e alegria voltaram a
habitar o olhar e o sorriso de centenas de cidadãos contemplados pelas
benfeitorias que virão.
Não estou
aqui a levantar bandeira política e jamais o farei como magistrado. Mas como
cidadão que traz na pele a marca de anos a fio de sofrimento, sei como é
importante a intervenção do poder público na vida das pessoas. Diferentemente
do que muitos pensam, as comunidades só querem e precisam de duas coisas:
dignidade e a oportunidade.
Ainda na
qualidade de cidadão, coloco-me a criticar e cobrar quando necessário. Da mesma
forma, cabe uma postura de reconhecimento a tão importante investida que conta
com uma importante parceria entre governos federal, estadual e municipal. Mais
que trazer benfeitorias, percebo que essa obra, antes mesmo de ser concluída,
já atingiu o coração das pessoas que ali residem.
Cuidar das
pessoas, olhar para elas e reconhecer o valor que têm é a melhor obra, o maior
legado, que o poder público pode deixar para sua população. Muitos terão água
encanada pela primeira vez, outros saberão o que é compartilhar da vida em
comunidade nos espaços comuns, como praças, quadras poliesportivas e o renovado
campo de futebol, áreas onde centenas de jovens ocuparão seu tempo praticando
esporte.
É esse o
papel do homem público: garantir o empoderamento dos cidadãos, com ações que
devolvam a eles a dignidade, contribuindo para a elevação da autoestima. Esse
cidadão precisa de confiança no futuro, o que o faz elevar suas potencialidades
e a capacidade de realização.
Com essa
reflexão reforço que uma cidade melhor para se viver é possível a partir de
cada um de nós. O poder público funcionando e fazendo sua parte; o cidadão se
apropriando das oportunidades e contribuindo para o progresso da comunidade
onde reside. Dignidade para todos e viva a nossa querida São Luís.
*Osmar Gomes dos Santos, Juiz de Direito da
Comarca de São Luís; Membro das Academias Ludovicense de Letras, Maranhense de
Letras Jurídicas e Matinhense