terça-feira, 29 de janeiro de 2019

Rogério Fumeiro, o Espanhol


Nunca se soube ao certo quando ele chegou em terra joanina. Mas ele estava ali, o “Espanhol”. Era assim que passou a ser chamado e assim respondia. Procopinho, um dos seus grandes amigos em vida, conta que ouvira do próprio que ele adentrou em São João Batista já vindo da vizinha cidade de Cajapió.

Ele costumava dizer que chegara ao Brasil no lastro de um navio. Teria desertado da revolução espanhola, onde se passara por morto em campo de batalha. Ele e mais alguns companheiros após sentirem-se salvos chegaram em áreas costeiras. Dali construíram balsas e arremessaram-se ao sabor das ondas. Essa aventura de dubitável verossimilhança esbarra já nos mares do Maranhão, próximo a cidade de Icatu. Uma vez sãos e salvos, os sobreviventes do exército espanhol espalharam-se. Uns fincaram raízes na capital, enquanto um apenas, o Rogério, buscou as terras da Baixada. Se isso era verdade, nunca se soube. O certo é que ele estava ali, a falar uma língua enrolada, que para nós, baixadeiros, soava no mínimo estranha.

Dizia chamar-se Rogério Fumeiro, mas poucos o chamavam pelo nome. Quase ninguém. Era simplesmente: “Espanhol”, ou ainda, “Conha”. Era alto, magro, aparentava ter uns cinquenta e poucos anos. Usava uma braçadeira de couro no pulso direito, no que costumava afirmar que ali residia a sua força, e talvez fosse verdade, pois costumava cerrar o punho da mão direita e dar violentos murros nas paredes. Um chapéu de abas largas sombreava-lhe os ombros largos. De compleição física meio vergada, apresentava uma sisudez que impactava. Tinha uma frieza no olhar. Não era de muitos amigos. Mas os poucos que tinha costumava visitá-los todos os dias ao cair da tarde. Neste particular se destacavam Seu Neco Binga e meu pai, Zé de Felix.

Lembro que ele gostava de pegar “cana de braço”, como chamamos em São João Batista, a luta onde duas pessoas ficam seus cotovelos sobre uma base sólida, enlaçando as mãos ou os punhos, e cada um, aplicando força muscular, tenta fazer o adversário dobrar o braço até à base dos balcões das quitandas, espaço onde se costumavam ver as pelejas de força e jeito, ou como atestam alguns, mais jeito do que força. Espanhol parecia ter ferro nos cúbitos. O antebraço era duro como uma rocha. Isso fazia dele um campeão.

Espanhol habitou numa casa simples localizada na denominada Rua Nova. Como morava só, a casa estava quase sempre fechada, sem o cuidado de um verdadeiro lar. Em suas dependências haviam uns amontoados de máquinas velhas, quinquilharias que ele fazia questão de guardar. Um cheiro forte de zinabre exalava por todo o ambiente. Às vezes se passava por oficineiro, pois consertava quase tudo quanto lhe dessem. Era funileiro, mas também experimentava uma certa espiritualidade. Costumava dizer que tinha o corpo fechado. Carregava consigo algo de misterioso. Muitas vezes o vi vociferando rezas para meu pai, que parecia dar-lhe crença. Se entendia do mister espiritual ou era esperteza de sua parte, nunca se soube. Mas o certo é que exercia um certo conhecimento com as cartas e o que estas revelavam. Muitos lhe tinham até como um bruxo.

Não costumava abrir sua casa para os de fora. Mas dava ao seu modo um tom de organização para o que tinha e guardava. Naquele amontoado de latas, flandres, parafusos, pregos, etc., ele sabia sempre onde encontrar o que estava precisando no momento. Lembro que a primeira e única vez em que vi uma fruta denominada “peruana” foi no quintal da casa de Espanhol. Quando estavam maduras permitia que fôssemos apanhá-las ou antes nos presenteava. Se no entanto lhe era recompensado com um cafezinho, costuma dizer simplesmente, “gracias”.

Ele nunca tivera família formada, entretanto em suas caminhadas, diziam os mais íntimos que ele tivera um caso com uma certa mulher e que esta chegara a ter um filho seu, ou melhor, uma filha. Julia era o nome dela. Sua filha. A menina fora criada apenas com a mãe e talvez nem tenha conhecido o pai de terras hispânicas. O certo é que, anos mais tarde, a sina estrangeira, ao que parece, a conduzira para solo europeu. Dizem que vive hoje pela Itália.

Dado momento passaram a ser mais escassas as visitas matinais ou do cair da tarde do velho espanhol. Ele passara a ficar mais recluso de seu próprio mundo.  Não era mais visto nas ruas, nem nas quitandas que costumava empurrar umas pingas de garrafão, cachaça artesanal que naqueles idos tinha produção farta nos muitos engenhos do lugar. Só podia estar doente. Foi o que pensou minha mãe, a quem ele só chamava de “comadre”. Dito e certo.

O velho ficara tísico. Tal diagnóstico só fora de fato evidente quando meu pai e Procopinho, seus amigos, buscaram socorrer-lhe. Já meio sem forças e cada vez mais definho, o velho espanhol declinara que poderia ter alguns parentes em São Luís. Pela denominação familiar Fumeiro, e com determinação e cuidado, os amigos terminaram por encontrar um sobrinho. Num misto de euforia e pesar, este pediu-lhes que trouxessem o tio que estivera perdido até então.

Espanhol foi levado a São Luis e entregue a seus verdadeiros familiares. Foi internado na Santa Casa de Misericórdia, mas diante do estado grave do mal que lhe acometera, terminou por falecer, e calou-se dos versos que costumava cantarolar: “Maranhão é terra boa, onde o poeta nasceu...”

(Crônica que integrará o livro "Crônicas da minha gente" a ser publicado brevemente.)





quarta-feira, 9 de janeiro de 2019

CARTA ABERTA A DAMARES ALVES, EXCELENTÍSSIMA MINISTRA DA MULHER, FAMÍLIA E DIREITOS HUMANOS

Márcia Friggi
Senhora Ministra, ontem eu também fiz brincadeiras em decorrência do seu polêmico vídeo. Brincadeiras e deboches também são formas de resistência. Sua postura e suas falas, entretanto, exigem uma análise séria e demandam respostas.

        Há tempo observo seus vídeos que circulam na Internet e, como professora, sinto-me profundamente ofendida e humilhada. Venho percebendo seu empenho em colocar a sociedade contra a educação brasileira e seu magistério. Para ilustrar o que afirmo, além dos links de dois vídeos que seguem abaixo deste texto, vou citar algumas das suas afirmações que me têm deixado triste e profundamente revoltada. Sobre o famoso “Kit Gay”, Senhora Ministra, que jamais existiu e a senhora sabe disso, tratava-se na verdade, do “Projeto escola sem homofobia”, que seria voltado para os professores, não para os alunos. Nesse projeto, sequer havia o livro “Aparelho sexual e Cia”. Projeto esse que foi vetado pelo governo federal em 2011, devido ao fato de ter sido alvo de críticas dos setores conservadores, os quais a senhora faz parte. Aproveito para alertar que muitas das escolas brasileiras, sequer possuem biblioteca, a minha é uma delas. O que temos, no momento, é uma Kombi doada pela comunidade escolar e transformada em biblioteca através de um projeto meu.

        Frequentemente a senhora usa suas falas, nos púlpitos das suas igrejas, para denegrir o trabalho dos professores e para nos colocar como responsáveis pelos problemas de uma geração, inclusive nos ataca como agentes de “perversão” e “doutrinação”.

        Em um dos seus vídeos, a senhora menciona um material que supostamente faria apologia ao sexo com animais. Senhora Ministra, talvez a senhora não conheça muito bem a regulamentação do exercício do magistério. Nós, professores, somos fiscalizados pelos nossos superiores: coordenação, direção e secretarias de educação. Os materiais que utilizamos, os livros escolhidos e até mesmo as nossas provas, são analisadas e aprovadas pelas instâncias superiores antes que cheguem aos os alunos.     

        Nesses vídeos a senhora também se refere a um “suposto projeto” de 2004 e com tom irônico, a senhora fala: “Não posso falar o nome da prefeita, não posso falar que ela é do PT e também não posso falar que foi esposa do Suplicy, mas juntamente com o grupo GTPOS, ela gastou mais de dois milhões de reais num programa”. Programa esse, ao qual a senhora afirma ter sido atribuída a função de promover, nas creches, o incentivo a ereção e masturbação de bebês de sete meses. Com essa sua fala, a senhora coloca os pedagogos e pedagogas que trabalham com a educação infantil na condição de criminosos, mais do que isso, na condição de doentes pervertidos. Meus colegas pedagogos, senhora ministra, que tão atenciosamente cuidam das nossas crianças e neste momento abro um parêntese para lembrar a heroica professora Helley Abreu Batista que morreu, com 90% do corpo queimado, após retirar seus alunos de um salão em chamas e de lutar contra o vigilante que ateou fogo à creche, em Janaúba, norte de Minas Gerais, em 2017. Meus colegas pedagogos, senhora ministra, jamais cometeriam esse crime, nem mesmo sob tortura. 

          A senhora, nos seus ataques, sempre focou a educação e o magistério brasileiro, esse foco não é inocente, é estratégico. Desmoralizar, humilhar, deslegitimar e demonizar os professores, colocar a sociedade contra nós e contra a educação, só nos enfraquece ainda mais. Como se já não bastassem nossos baixos salários, a falta de condições estruturais, a ausência e a falta de incentivo a bons cursos de formação continuada. Como se já não bastasse o desrespeito e a violência com que somos tratados em nossos atos de protesto, paralização e greve, enquanto políticos protegidos e aquartelados, debocham das humilhações das quais somos vítimas. Ao nos enfraquecer, a senhora enfraquece a educação e isso lhe é extremamente útil e providencial. Um povo sem acesso à educação de qualidade é muito mais fácil de “doutrinar”, de transformar em “ovelhas”, em “inocentes úteis” e nós sabemos muito bem onde, verdadeiramente, vem ocorrendo a “doutrinação” no Brasil e sob que circunstâncias e métodos.

        Vou falar brevemente, Senhora Ministra, sobre o que fazem os professores para muito além das suas atribuições. Somos nós que, na maioria das vezes, descobrimos quando um aluno possui deficiência visual, porque na sala de aula temos parâmetros de comparação. O aluno está sentado na mesma distância do quadro em que estão seus colegas, mas franze a testa, comprime os olhos. Somos nós que chamamos os pais e alertamos.

         Muitas vezes, Senhora Ministra, somos nós que percebemos um problema mais grave. Nossos olhos treinados e experientes conseguem detectar o aluno ou aluna que se isola, nega-se a realizar trabalho em grupo, não participa do recreio, tende a ficar no mesmo lugar e realizar movimentos repetitivos com o corpo. Somos nós que alertamos os pais e depois da avaliação médica, enquanto a família vive o luto de um diagnóstico de autismo, por exemplo, nós professores seguimos trabalhando métodos e estratégias para incluir esse aluno da melhor forma possível.

         Somos nós, Senhora Ministra, que muitas vezes percebemos a automutilação em alguns alunos e ela não se deve ao nosso trabalho de “doutrinação” como a senhora tenta afirmar, ao dizer que confundimos nossas crianças com a “ideologia de gênero”. Os adolescentes que chegaram até mim com automutilação, viviam um cotidiano familiar desestruturado. Desestruturado no seio da “família tradicional” que a senhora tanto defende. O que a senhora propaga e demoniza como sendo “ideologia de gênero”, na realidade do chão da sala de aula, Senhora Ministra, é a exigência do respeito, é o cuidado para com todos os alunos, é a luta contra o bullyng que pode destruir emocionalmente um aluno e até levá-lo ao suicídio, é a educação contra a cultura do estupro e do machismo. Nós enfrentamos salas de aulas superlotadas, lidamos com as particularidades de cada aluno e incentivamos o respeito para com todos, sem o qual, não seria possível ministrar uma aula.

       
Somos nós, Senhora Ministra, que percebemos pela postura corporal, pelo silêncio, pelo olhar triste de quem suplica por socorro, quando uma criança ou adolescente é vítima de violência sexual, violência essa, normalmente sofrida no seio da “família tradicional”. Somos nós, Senhora Ministra, que conversamos com essa criança, que ouvimos o relato do seu sofrimento, que tomamos as providências, que chamamos o conselho tutelar e somos nós que acompanharemos essa criança ou adolescente com atenção e cuidado redobrados.

        Finalmente, Senhora Ministra, são inúmeras as nossas atribuições, as quais nos entregamos com amor e seriedade, respeito para com nosso diploma, para com nosso juramento e para com a instrução conquistada através da disciplina, do estudo e da leitura que, certamente, não foi adquirida no espaço do whatsapp.

        Somos nós, professores, que olhamos, cuidamos, educamos, instruímos e ensinamos as crianças e jovens deste país. Somos nós que protegemos essas crianças e jovens quando a família falha e quando o Estado falha.

        Esta minha carta aberta tem dois objetivos: pedir-lhe mais respeito para com a classe do magistério. Venho também, oferecer-lhe um conselho, desça dos seus delírios fakes, Senhora Ministra, pise no chão e encare a realidade. Porte-se com a seriedade que a importância do seu cargo exige. Deixe assuntos fúteis como cor de roupa adequada para seus colóquios no púlpito da igreja, No exercício da sua atual função como ministra, olhe para o magistério brasileiro com olhos da verdade. Olhe pelos quase seis milhões de crianças sem o nome do pai nos seu registro. Encare a quinta maior taxa de feminicídio no mundo e que vem aumentando assustadoramente, alimentada pela cultura do machismo e da violência. Olhe para os milhões de mulheres que, longe da família tradicional, criam seus filhos sozinhas e com dignidade. Olhe para as crianças e jovens que estão nas ruas, Senhora Ministra. Lembre-se que essas crianças não se perdem na rua, foram perdidas dentro de casa, no seio das famílias tradicionais ou não e negligenciadas pelo Estado, as ruas apenas as adotam. Olhe para os LGBTs e às violências que têm sido vítimas. O Brasil é o país quem mais mata LGBTs no mundo e temos visto esse número aumentar, incentivado pela cultura da intolerância.

        A senhora deve estar se perguntando: “Quem é essa professorinha petulante que me escreve essa carta aberta?” Vou facilitar para a senhora, vou me apresentar. Sou Marcia Friggi, poeta e professora de Língua Portuguesa e Literatura do Estado de Santa Catarina. Exerço meu cargo após ter sido aprovada em concurso público, submetida a rigorosos exames médicos periciais, além de ter passado pelos três anos de estágio probatório. Sou aquela professora que foi violentamente agredida por um aluno em 2017, caso que teve repercussão nacional e internacional. Sou a professora que, após violência física, sofreu linchamento virtual por parte dos que comungam das suas ideias. A professora que teve sua imagem com o rosto ensanguentado, usada sem autorização, pelos mesmos que me atacaram virtualmente, para promover a campanha política eleitoral do seu candidato.

         Naquele período, visitei o inferno e sobrevivi. Sobrevivi à depressão, à fobia social, a crises de ansiedade, à insônia e à vontade de morrer. A tudo isso, talvez se deva a minha ausência de medo. Eu não tenho medo porque sou uma sobrevivente, porque na minha casa não há uma agulha sequer que não tenha sido comprada com o suor do trabalho honesto. Não tenho medo porque não ocupo e nunca ocupei cargo comissionado. Não tenho medo porque nunca dependi de favores políticos. Não tenho medo porque pelas minhas mãos jamais passou dinheiro público. Finalmente, Senhora Ministra, não tenho medo porque se ao seu lado está o governo atual e suas “ovelhas”, do meu está o mundo. Do meu lado está um mundo inteiro que não aceita mais retrocesso. Um mundo que deseja respeito para com todas as pessoas. Um mundo que não aceita mais discriminação, intolerância, preconceito, machismo, homofobia, xenofobia. Um mundo que deseja que uma mulher possa terminar uma relacionamento sem ser agredida ou morta. Um mundo que respeita a vida e a natureza. Um mundo que se pretende mais humano, justo e igualitário. Não tenho medo, Senhora Ministra, porque minha militância pelas causas que considero justas sempre foram exercidas nas ruas e no espaço virtual, nunca na sala de aula. Não tenho medo, Senhora Ministra, porque sou adepta da paz e minha única arma é a palavra e é dela que venho me utilizando como um instrumento de amor à vida, à liberdade, à arte e à resistência. Já participei de algumas coletâneas como escritora, minha última participação foi no “Mulherio das Letras”, o que muito me honra. Neste ano de 2019, lançarei meu primeiro livro de poesia, no qual estão muitos dos meus poemas de cunho social e resistência. Está também, entre meus projetos mais importantes, o livro sobre “denúncia dos flagelos que sofre o magistério brasileiro”, o qual percebo de suma importância, considerando os constantes ataques e humilhações a que somos submetidos.
Ainda nos veremos, Senhora Ministra, nas batalhas pacíficas da vida, das quais eu jamais fugi.

Marcia Friggi
Poeta e professora de Língua Portuguesa e Literatura do Estado de Santa Catarina

terça-feira, 1 de janeiro de 2019

A CRÔNICA DO DIA


O DIA EM QUE O MARANHÃO ENCHEU AS MALAS DE DÓLARES


Por Nonato Reis

Nonato Reis
A arte de contar histórias se perde no tempo. É provável que tenha surgido com os sumérios, a primeira civilização de que se tem registro, isso há cerca de 5.000 anos antes de Cristo, ou até a uma época mais recuada no tempo, quando, segundo a Bíblia, os anjos do Senhor habitavam a Terra. Como não dava para imprimir a palavra e os meios então disponíveis eram precários e pouco acessíveis, o jeito foi transmitir oralmente as experiências acumuladas. Assim, de geração em geração, os relatos vividos chegaram aos dias atuais, muitos deles no formato de causos.

E o que seriam causos? Na definição mais inteligíveis, histórias contadas de forma simples e direta, porém com leveza e senso de humor. Os causos podem ser inventados ou não e, independente da veracidade, o que conta mesmo é a versatilidade com que são narrados.
No Brasil, os mineiros ganharam a fama de exímios contadores de histórias, mas em todas as regiões do País o gênero se disseminou e contagiou gênios da Literatura, como o poeta Mário Quintana, gaúcho, e Graciliano Ramos, alagoano, que publicou uma obra memorável, “Histórias de Alexandre”, livro protagonizado por um vaqueiro contador de causos.
No Maranhão, esses artistas da palavra vicejam aos magotes, especialmente no meio rural, e sobre eles escrevi uma crônica, reunindo os mais destacados com quem tive o privilégio de conviver. 
Um deles, um tio-avô meu, de nome Levi, que reunia plateias para ouvir suas histórias, quase sempre envolvendo espíritos e pescadores. Também o Zé Branquinho, que gostava de se exibir nos velórios, atraindo para si a atenção de um público marcado pela dor da partida do ente querido. Cumpria assim o papel importante de desanuviar o clima de opressão que marcam as cerimônias fúnebres.
Domingos Dutra
De Domingos Dutra ouvi uma história engraçada, mesmo que difícil de acreditar. Era o início dos anos 90, Edison Lobão vencera as eleições para o Governo do Maranhão, numa eleição aguerrida com o senador João Castelo. Governador, deu de cara com os cofres vazios. O dinheiro mal dava para pagar as obrigações legais. Como fazer os investimentos que se faziam inadiáveis, para garantir a retomada do desenvolvimento?
Lobão correu a Sarney, seu mentor político, e ambos tiveram uma ideia mirabolante. Articular uma grande reunião com chefes europeus e tentar convencê-los a investir num Estado que, mesmo falido, tinha enorme potencial estratégico. Lobão imaginava sensibilizar os governantes usando a figura emblemática de Sarney que, mesmo com enorme rejeição interna, pela gestão desastrosa no exercício da Presidência, gozava de prestígio internacional, onde era visto como estadista e homem de letras, responsável por conduzir o País de volta ao regime democrático.
A reunião teve lugar no parlamento francês, em Paris, e foi marcada pelo sentimento de comoção, em face do quadro dramático do Maranhão, que ostentava a condição de unidade mais pobre da federação, berço da fome e do analfabetismo. A França, como colonizadora do Estado e fundadora da única capital brasileira não lusa, tomara a iniciativa de liderar uma ajuda emergencial ao Estado, em dinheiro vivo, por meio de doações. 
Diante de um plenário lotado, que aguardava com ansiedade a chegada do governador maranhense, uma enorme sacola corria de mão em mão entre os chefes de Estado, para que depositassem nela somas em dólares, a moeda forte da época.
Passou-se meia hora, a sacola abarrotada de dinheiro sobre a mesa solene, e nada de Lobão. Mais outra meia hora, todos já à beira de um ataque de nervos, sem saber o que acontecera com o mandatário maranhense, e eis que adentra o recinto aquela figura esquálida, “um caniço em forma de gente, vestido de paletó e gravata”. 
Foi um espanto geral! O governador do Estado era a própria imagem da desnutrição que assolava o Estado. Alguns chefes de Estado, tocados de emoção, não conseguiam conter as lágrimas. Aquilo constituía uma hecatombe.
Lobão, então, ao perceber o clima de solidariedade da plateia, caminhou, passos trôpegos, até a tribuna, situada do lado esquerdo da mesa, sacou uma fotografia do bolso do paletó e a exibiu diante daquele amontoado de câmeras e flash apontados sobre ele. 
Pegou o microfone e anunciou: “Minha gente, este é o homem que me faz oposição no Maranhão”. Então irrompeu nos telões a imagem longilínea do deputado Domingos Dutra que, de tão magro, parecia o faquir das Américas.
De dor, o plenário veio abaixo. A situação do Maranhão era devastadora, e uma única sacola de dinheiro mal daria para abastecer por uns tempos a mesa dos políticos famintos. Faltava contemplar o povo, resgatar o distante berço irmão da ignomínia. E assim, sob as ordens do governo francês, deu-se início ao ritual de malas gigantes, que entravam vazias e saiam do plenário abastecidas de dólares.
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Integra o livro de contos e crônicas "Domingos Dutra, o homem que desafiou o Futi", previsto para 2019.