Naqueles
bons tempos em São João Batista a Semana Santa era um misto de muita alegria,
tradição e movimento na sede do município, principalmente por conta da venda do
caranguejo que se dava entre a segunda-feira e a quinta-feira. Era um tempo de
reflexão e respeito. As tradições religiosas eram mantidas. A procissão do
Domingo de Ramos levava a todos os meninos do catecismo para a saudação da
Páscoa que estava por vir. E eu estava lá.
Os
mais velhos costumavam dizer que Jesus naqueles dias estava com dor de cabeça.
Nenhum barulho abusivo era permitido ou aceitável. Uma tradição era muito
cultivada também naqueles dias – os afilhados buscavam seus padrinhos para
serem abençoados. Eu, quando já bem taludinho também seguia esta regra. Selava
o cavalo que tínhamos em nossa casa e ia até a casa de meu padrinho João Gomes
que morava na localidade denominada de São Bernardo, já no município vizinho de
São Vicente Férrer. Ele era um próspero dono de engenho que produzia além do
mel de cana uma cachaça de fama na redondeza. A visita era pouca, no dia
seguinte já estava eu de volta pra casa.
Os
preceitos e ensinamentos dos mais velhos era seguido à risca. Diziam enfim que
em tempos mais remotos nem rádio se ligava naqueles dias. As traquinagens e
peraltices eram temporiamente perdoadas até que se passasse o período de
respeito aos dias que antecediam à morte de Jesus. O acerto de contas vinha
depois com certeza. Era proibido transgredir, pecar.
A
tradição de abster-se da carne era levada muito a sério. A venda de carnes
vermelhas nos açougues do mercado dava vez para a venda do peixe seco, do
camarão seco, o peixe salpreso que na maioria das vezes vinha de outros
municípios da região como Viana e Penalva. Seu Vicente Soares era quem buscava
e revendia as disputadas curimatás salgadas que vinham das bandas de Jacaré de
Penalva e de Cajari. Até as outras carnes também não eram tentadas, tudo como
cumprimento da velha tradição.
Os
comerciantes bem antes dos dias considerados santos – uma vez que
religiosamente toda a semana era considerada e guardada – abasteciam seus
comércios de tudo que pudesse ser vendido de mantimentos, pois nas noites das
terças-feiras e madrugadas das quartas, até por volta das duas da tarde o comércio
experimentava seu maior movimento, tudo por conta da grande aglomeração de
pessoas que vinham dos mais diversos povoados de São João Batista ou até mesmo
de São Vicente Férrer, Matinha e São Bento.
O
caranguejo era o nosso ouro. Naquelas cercanias nenhum município tinha uma
produção tão pujante quanto o nosso. Barcos e mais barcos adentravam dias a fio
nos igarapés dos mangues com exímios catadores do crustáceo decápode. Esse fato
se explica por ser São João, ladeado por extensas áreas de manguezais e fronteiriço
da Ilha dos Caranguejos, um berçário e habitat natural para procriação das
muitas espécies. Destas, as mais comuns e mais encontradas no estuário do rio
mearim e golfão maranhense são o “caranguejo uçá” (ou caranguejo auçá) e o
guaiamum.
O
palco maior desta movimentação era no porto da Beira de João Baixinho. Na noite
da terça-feira santa a partir das 7 da noite um grande mercado aberto se
formava ali. Barracas eram armadas, bancas de jogo-caipira também era quase
certo que por lá se achavam. As canoas que traziam os muitos cofos de
caranguejos chegam ao longo da noite e ali mesmo eram negociados. Muitos que
mesmo sem o propósito de fazer nenhum negócio também iam para o Porto da
Beira...
As
maiores vendas ao longo da noite e madrugada eram feitas para aqueles que
vinham nas cavalarias ou burragens dos mais longínquos povoados. Após a compra
do caranguejo era a vez de comprar o café, o açúcar, sabão, o querosene, isto
porque naquela época não se tinha a luz elétrica nos povoados. Tudo de
mantimento era vendido. Nenhum período do ano, os comerciantes de São João
Batista experimentavam tanto movimento em suas compras e vendas.
Esse
movimento era ao longo de toda a noite. Os de mais distantes que traziam seus
animais carregados de paneiros de farinha, após a venda, e dar de beber aos
animais, geralmente buscavam uma área de capoeira baixa para que estes
descansassem da longa viagem e pastarem um pouco. Era nesta hora que a molecada
fazia a festa. Uns sabidos aproveitavam para suavizarem-se, ainda que por
aquele ato estavam a pecar. A zoofilia corria solta. Outros, mais endiabrados,
como se estivessem sob a égide do capeta, soltavam os animais para que seus
donos ficassem a procurar na hora de voltarem para casa. Uma das áreas mais
procuradas era a Baixinha de Biné e suas imediações.
Este
misto de devoção e algazarra ia até a quinta-feira santa. Na sexta-feira, quase
sempre as manhãs amanheciam chuvosas. Uma chuva fina teimava no horizonte
matinal. As casas pareciam que custavam a acordar para o pesadelo crucial. As
quitandas que antes viveram o intenso movimento de início da semana, agora
estavam de portas fechadas. Poucos se aventuravam a caminhar nas primeiras
horas. Quando muito em algumas localidades se prometia lá por volta das dez
horas uma talha de piões. Os adeptos preparavam bem antes roliços e pesados
cocos da palmeira babaçu e se punham a lapidar aquilo que seriam as estrelas
dos terreiros. A talha de piões era algo que reunia muita gente. Já outros
davam-se a empalhar os judas que seriam malhados nos dias que se seguiam.
Mas
nada reunia mais gente do que os banhos nos campos e açudes. Era como se aquilo
fosse uma limpeza corporal. Como se ali se quisesse limpar o corpo de tamanha
culpa. O açude que ficava pras bandas da casa de Dona Celina Facure era um dos
mais procurados até ser feita a grande barreira que levava ao Porto da Raposa.
Recém construída pelo então Prefeito Luiz Figueiredo o aterro da Raposa deixou
um lastro de um grande açude que desembocava na comporta. Ali era o local da concentração
do banho, haja vista a ponte de madeiras permitir saltos mirabolantes e
mergulhos longos e demorados, dadas a profundidade e correnteza.
As
semanas santas daqueles memoráveis tempos eram sobretudo celebração de respeito
e boa convivência. Mas vieram os novos tempos e quase mais nada disto acontece
hoje... E a Semana Santa é agora só mais um feriado prolongado!