HOJE É DIA
DE...
A
MULHER DO PRÓXIMO
(*) Nonato Reis
Maria Júlia ganhou o sugestivo apelido de “A mulher do próximo”
algum tempo depois de deixar a localidade de São José, no município de Viana,
às margens do rio Pindaré, praticamente escorraçada pelo pescador Bucho de
Bilha, com quem teve um caso de amor complicado. Sem ter para onde ir, tomou o
caminho da cidade e fixou moradia na periferia, onde passou a “ganhar a vida”
como prostituta.
Parecia trazer na alma a mal sina de provocar a gula do sexo
oposto. Nascera no lugar chamado Cachoeira, distante algumas léguas do
Ibacazinho, e ali enfileirou amantes, um sobre o outro. O último, um vaqueiro
da fazenda Ingá Seca, obrigou-a a deixar o torrão natal e a família às pressas,
depois que o homem - a quem dera o prazer de deitar com ela por algumas fases
de lua - morto de ciúme, matou a golpes de faca dois outros pretendentes e
tentou mandá-la com “os sócios” para a “cidade de pés juntos”.
Por ironia das coisas, do envolvimento com o vaqueiro herdou o
apelido de “Santinha”, mas ela própria sabia que de santa só carregava o nome.
Mal chegou no São José e viu surgir no seu caminho a figura de Bucho de Bilha,
um pescador grandalhão, de quase 1,90m de altura; musculoso, barriga em formato
de melancia, cara enfezada.
Bucho de Bilha encarnava a imagem do macho da zona rural. Fora
educado sobre o figurino tradicional, que retratava a mulher como a “dama (ou
escrava) do lar”. Para o pescador, a mulher para casar tinha que ser prendada –
saber cozinhar, lavar e engomar; cuidar da casa e ser dedicada ao marido.
Estudar? “Não, senhor! Elas se formam e depois ficam cheias das ideias,
querendo trabalhar fora, sair com amigos e coisa e tal”.
Bateu os olhos em Santinha e foi amor à primeira vista. Casados,
formavam um par desconexo. Ele era rude, grosso, bicho do mato; ela, educada,
meiga, receptiva. O sentimento, porém, tem as suas próprias razões e Santinha
parecia nem notar as diferenças entre ambos. Bucho de Bilha ditava as regras da
casa; mantinha-se vigilante sobre quaisquer sinais que pudessem colocar em
risco a estabilidade do casal.
Porém descuidava de um pressuposto básico. Nunca fora de se
preocupar com estética, nem de seguir princípios de higiene. “Esse negócio de
sabonete, cremes e não sei mais o quê é coisa de fresco”, usava a frase como
álibi para os que reclamavam dos odores repugnantes da sua presença.
Na cama era formidável. Vangloriava-se de passar duas horas
ativo, sem intervalos ou preliminares. Santinha aguentava o ritual noturno em
silêncio: o peso do corpo dele subindo e descendo sobre o seu; o suor
enlameado, pegajoso; o cheiro acre que impregnava o espírito e embrulhava o
estômago. “Ou essa mulher é uma santa ou deve estar sofrendo do juízo”, diziam
as más línguas.
Santinha até que se esforçou por manter a relação, mas
fidelidade nunca foi o seu forte. Não demorou e o juízo dela virou do avesso.
Um primo que estudava na capital e há anos não sentava os pés no povoado,
apareceu de repente para uma temporada de férias. Como toda a família dele já
morava em São Luís, a opção foi aboletar-se na casa da prima.
Tarcísio era magro, alto,
branquela, fala mansa. Metido a poeta, escrevia umas coisas que tocavam o
coração da prima como descarga elétrica. E ainda havia aquele cheiro de seiva
do campo que gostava de usar após o banho e que fazia Santinha flutuar.
Em pouco tempo, a vida de Maria Júlia encheu-se de luz. O primo
grudara nela como sombra. A presença dele parecia estar em todos os lugares,
especialmente naquele ponto mais sublime do espírito. Como que entorpecida de
um sonho azul, deixou-se guiar por aqueles fluidos magnéticos, sem se dar conta
de que avançava um sinal proibido. E foi assim, pisando em nuvens de algodão,
que a santa adentrou o “Jardim do Éden” e “plantou” um par de adereços nos
cornos do pescador, em plena cama conjugal.
A reação do marido foi imediata. Escaldado com o alerta dos
“amigos” de que a amizade dos primos passava da conta, Bucho de Bilha largou as
redes de pescar no rio e fez o caminho de volta. Vendo a casa fechada e ouvindo
gemidos abafados que vinham do quarto do casal, não teve dúvidas: meteu o pé na
porta escancarando diante dos olhos a cena do crime.
_ Filho da puta, sua desavergonhada; eu mato vocês!
Espumando de ódio, lançou-se sobre a cama como um touro
selvagem. Lépido feito puma, o primo deslizou entre as pernas do pescador, ganhou
a porta da rua e fugiu em disparada, completamente despido, sob o olhar
estupefato dos moradores.
As mãos do marido traído caíram pesadas sobre o pescoço da santa. Depois a
pegou pelos cabelos e com uma das mãos a conduziu até o meio da rua. Diante do olhar
incrédulo da plateia, sacou da peixeira e cortou a ponta de cada uma das
orelhas da mulher.
Em seguida a arrastou pelos
cabelos até a casa dos pais e a arremessou no meio da sala como quem joga fora
um saco de lixo. “Tomem a desavergonhada de vocês. Ela fez um cabra macho de
corno, mas nunca mais vai se meter a besta com outro”.
Foi então que, triste e amargurada, Maria Júlia tomou a decisão
que mudaria o curso da sua vida e o próprio nome. Deixou a casa dos pais, que
àquela altura não era mais sua, e alugou uma “porta e janela” na entrada da
Gugueia, que transformou em “parada obrigatória” de homens à procura de sexo
por dinheiro.
Não demorou e a fama dela de
“pegadora” correu beirada. Em uma única noite chegava a atender mais de dez
clientes, que faziam fila na porta da casa, dispostos a meter a mão na
carteira, para tê-la na cama por uma ou duas horas. A cada cliente saciado, ela
gritava para a fila: “próximo!”. E assim varava a noite no ofício de “ganhar a
vida”, que, segundo ela, não lhe impunha sacrifício algum. Muito pelo
contrário. “Cuidar bem da freguesia é o que me deixa viva”.
Uma noite, já rompendo a aurora, a Estela Dalva límpida no
horizonte, ela chamou o próximo e então deu de cara com aquele homem enorme, a
barba por fazer, e um facão do tipo “americano” em uma das mãos, que reconheceu
imediatamente. Sem contrair um único músculo, fitou-o com frieza espantosa e já
se preparava para recebê-lo em coito, quando o homem interveio: “Eu não vim
deitar contigo. Vim te levar de volta pra casa, que é lá o teu lugar”.
Maria Julia ponderou que não
podia acompanhá-lo, agora era mulher de vários homens, dividida que estava entre
todos que a procuravam. “Não lhe pertenço mais, sou uma mulher da vida”, ao que
Bucho de Bilha acolheu com espantosa criatividade. “Sim, você é ‘A mulher do
próximo’, eu sei, mas acontece que “o próximo” sou eu, e depois de mim não
haverá outro, porque aquele que se meter a besta contigo eu mando para o quinto
dos infernos”. E pegando os pertences de Maria Júlia, ordenou.
- Vem comigo, que o puteiro
fechou.
Maria Júlia interveio:
- Você não vai mais me arrastar
pela vida como quem puxa uma carrocinha. Eu agora sou do mundo. Não pertenço a
ninguém.
Bucho de Bilha sabia que, se a
perdesse, perderia a própria vida. Dela sentia falta como o próprio ar, para
viver. Então, jogou a última cartada.
- Você vem e eu te deixo ‘de
corda de rastro’, para fazer o que quiser e com quem quiser, contanto que não
me abandone.
Maria Júlia o fitou entre
perplexa e admirada:
- Vai me aceitar desse jeito,
sabendo que será alvo de chacota, execrado e humilhado?
- Aceito sim, que ninguém tem nada com isso.
- Aceito sim, que ninguém tem nada com isso.
Seguiram os dois de volta para
casa, e Maria Julia assumiu o duplo papel de “mulher casada” e também “do
próximo”.
A casa do pescador incorporou a
rotina de filas de homem à espera de uma vez para deitar com Maria Julia, e até
tarde da noite ouvia-se a voz dela a movimentar a clientela: “próximo!”.
...
Este texto integra um livro de crônicas ambientado no
Ibacazinho, cujo título será "A mulher do próximo".
(*) Nonato Reis, natural de Viana, Maranhão, é jornalista e autor do romance Lipe & Julina.