HOJE É DIA
DE...
ZÉ DA
BURRA E O AMOR A “DAS DORES”
Por
Nonato Reis
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Nenhuma frase ou palavra seria capaz de
descrever a relação de Zé da Burra com a “Das Dores”. Ele tinha por ela uma
mistura de sentimentos que ia do amor à loucura, cruzando no caminho com o
fanatismo e o desespero - uma força misteriosa que os ligaria para além da vida
e do senso comum. Das Dores aparecera na vida do carroceiro ainda bebê, após um
parto prematuro, que levou a mãe dela para o mundo invisível.
Órfã e necessitada de cuidados especiais, teria
tido o mesmo destino da mãe, não fora a iniciativa de Zé, de levá-la para casa
e dela cuidar como se fora uma filha.
Fizera-lhe cama de paparaúba – uma madeira leve e macia. Dava-lhe banhos
diários, leite de cabra na mamadeira e atenção todas as horas do dia e da
noite. Tanto desvelo despertou o ciúme da esposa, Joana, que não entendia
aquela estranha ligação. “Home, tu ficou doido do juízo! Donde já se viu tratar
um animal como se fosse gente! Nem comigo, que sou tua mulher, tu tem esse
chamego”. Zé dava de ombros. “Deixa de besteira, Joana. A coitadinha é uma
infeliz, que nunca nem conheceu a mãe. Se eu não tratar dela direito, como que
vai se criar?”.
Sob os cuidados de um pai zeloso, Das Dores
“empinou a curica”. Cresceu, ganhou peso. Tornou-se um belo exemplar da espécie
equina. O amor entre os dois também se fortalecia a cada dia. Para onde um ia,
o outro ia junto. Até nas festinhas de radiola, que Zé comparecia com
frequência, lá estava a égua a lhe fazer companhia. Às margens do rio Maracu,
Zé fazia a higiene do animal: dava banhos, podava a crina, penteava os pelo;
inspeciona o estado dos dentes e das patas.
Conversava
com ela como se fosse gente. Das Dores, aliás, tornou-se a confidente de Zé de
todas as horas. E foi a primeira a saber quando ele decidiu mandar Joana embora
de sua vida, após esta lhe ter dado um ultimato para que escolhesse entre si e
o animal. “Vê se tem cabimento ela querer que eu me prive de ti! Antes vá ela
cuidar da vida, que não sou homem de se dobrar aos caprichos de mulher”, ao que
a égua parecia concordar, abanando o rabo de um lado a outro.
O desenlace do casamento, porém, foi
traumático, porque Joana não aceitou passivamente ser preterida por uma égua.
Após ‘fazer as trouxas’ postou-se na frente da casa e, aos berros, comunicou
‘ao povo da rua’ que se separava do carroceiro por infidelidade conjugal dele.
“Que todos fiquem sabendo. O Zé, meu ex-marido - que agora eu não quero mais
nem pintado de ouro - me largou por causa de uma égua! Isso mesmo que vocês
ouviram: o Zé, meu ex-marido, me traiu com a Das Dores. Os dois estão apaixonados.
Na maior sem-vergonhice, viraram amantes debaixo das minhas fuças”.
O
caso, antes tratado “a boca pequena” – na comunidade até as paredes das casas
especulavam que Zé e Das Dores mantinham uma relação muito além dos laços de
amizade, ou de pai e filha, como ele preferia - tornou-se assim escancarado e
foi bater na delegacia, por conta de uma queixa de moradores indignados com o
que consideravam um atentado contra a moral e os bons costumes. O delegado
Josias Carteiro, sem outra saída, viu-se obrigado a chamar o carroceiros às
falas.
-
Seu Zé da Burra, por mim nem mexia nesse negócio, porque eu já tenho muitos
problemas para me ocupar. Mas acontece que recebi uma reclamação formal contra
o senhor e é meu dever averiguar. O senhor está tendo um caso com uma égua?
O carroceiro, para surpresa do delegado, ao invés de rechaçar, confirmou a
acusação e foi além:
- É verdade, seu delegado. Mais do que um caso,
eu amo a Das Dores. E agora que eu me livrei da Joana, é minha intenção
regularizar esta situação para que as coisas fiquem nos conformes da lei.
O delegado não entendeu o alcance das palavras
de Zé e cobrou explicação.
- Desculpe, seu Zé, mas queira ser mais claro.
O que o senhor quer dizer com “regularizar a situação”?
- Casar, seu delegado. Eu e a Das Dores vamos
casar de papel passado. Não é assim que se resolve uma situação dessa?
O delegado fitava Zé com os olhos esbugalhados,
sem saber se o carroceiro falava a sério ou fazia troça com ele.
- Seu Zé, antes de mais nada, não se esqueça
que o senhor está diante de uma autoridade da lei. Não queria brincar comigo,
porque o senhor pode se dar muito mal.
- Longe de mim desrespeitar o doutor Carteiro. O que eu quero é viver debaixo
da lei, que sempre fui um homem sério e cumpridor de meus deveres.
O delegado então explicou a Zé da Burra que a
ideia dele era impraticável, já que não havia como casar um homem com um
animal.
- Isso é contrário à lei, seu Zé.
- Onde que a lei diz que não pode, seu
delegado?
- A lei diz que o casamento se dá entre um
homem e uma mulher.
- Mas diz que não pode entre um homem e um
animal?
- Não diz. Não precisa dizer.
- Seu delegado, o senhor me adesculpa, que sou
um homem ignorante. Mas ouço dizer que aquilo que a lei não diz não é proibido.
E já que não diz que não pode, é porque pode.
O
delegado, já impaciente, e vendo-se jogado num beco sem saída pela pertinácia
do carroceiro, despachou-o sob ameaça.
- Seu Zé,
vá embora e não volte mais aqui, antes que eu mande prendê-lo por ofensa da
lei. Procure a igreja e peça perdão pelos seus pecados.
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A frase
final do delegado acendeu uma luz na mente do carroceiro. Se a lei dos homens
não o deixava casar-se com Das Dores, quem sabe a lei de Deus o permitia?
Afinal, ele amava aquela égua como jamais amara alguém, e Deus abençoa o amor sincero.
Foi ter com o padre Jozino, que, anos atrás, fora um velho amigo de seus pais,
já falecidos.
Na sacristia, onde dava orientações para a festa do mês mariano, consagrada à
Virgem Santíssima, o padre o saudou com entusiasmo.
- Ora,
ora, quem nos visita! A que devo a honra da sua presença, seu José?
Após pedir
e receber a bênção do religioso, um homem já de cabelos grisalhos e venerado
pela comunidade, o carroceiro foi direto ao assunto.
- Seu
padre, eu quero me casar de novo.
O padre
levou um susto.
- Mas já,
seu José? Que eu saiba a sua esposa acabou de sair de casa.
- Saiu
para não voltar mais, seu padre. Meu caso com ela está liquidado. É favas
contadas.
- Bom, mas
ninguém casa, descasa e casa de novo assim de repente, Seu Zé. O senhor terá
primeiro que regularizar sua situação, perante a lei.
- A lei
dos homens não me favorece, seu padre. Mas a lei de Deus, essa sim. Num é Deus
que recomenda que deve de ter amor sincero entre um casal, para que seja
abençoado por Ele?
O padre
fitou Zé com interesse e o interpelou.
- Seu Zé,
a propósito, quem é esta mulher, a quem o senhor jura esse amor aprazível a
Deus?
- É a Das
Dores, que outra melhor nunca vi.
- Das
Dores? Não me lembro de tê-la conhecido. É nova aqui na comunidade?
- Seu
padre, Das Dores é aquela eguinha que eu cuidei desde menina, dando leite na
mamadeira, tratando como uma filha. Como que o senhor não se lembra?
O padre
arregalou os olhos e teve um acesso de tosse, que quase o matou. Em seguida, os
olhos faiscando e lacrimosos, enxotou o carroceiro da sacristia.
-
Retire-se da casa de Deus, que o senhor não é digno de estar aqui!
- Padre,
pelo amor de Deus. Eu só quero a bênção do Senhor para a minha união com Das
Dores. Não me negue isso.
- Deus não
abençoa a desfaçatez. Onde já se viu casar com um animal? O senhor enlouqueceu?
- De amor,
seu padre! Eu amo a Das Dores, e Deus abençoa o amor.
- Isto que
o senhor chama de amor é coisa do demônio. E aqui não tem lugar para Satanás.
Saia daqui imediatamente!
E de posse
de uma vassoura, botou o carroceiro porta afora da igreja, como quem varre o
lixo.
Triste,
amargurado, Zé da Burra entendeu que estava perdido. Temente a Deus, jamais
viveria fora das bênçãos do Senhor. Também não tinha como se afastar de Das
Dores, o único ser vivo na Terra a quem jurara amor eterno.
Fechou-se
em casa para sempre. Não mais comeu nem bebeu. Por amor, imolou-se. A notícia
correu beirada e se espalhou no povoado feito fogo em canavial. “Zé da Burra
morrera por paixão a Das Dores”.
Ao velório
do carroceiro, quase ninguém compareceu. Apenas o padre Jozino, em face da
obrigação sacerdotal, o sacristão Antônio, que o auxiliava no ofício, a
ex-mulher Joana que, temente a Deus, achou por bem perdoá-lo, e a égua Das
Dores, que não apenas assistiu ao enterro, como jamais se afastaria da
sepultura, até os últimos dias de vida. Sem comer, e apenas tomando a água que
brotava misteriosamente da cabeceira do túmulo do carroceiro, Das Dores morreu
no alvorecer da primavera, três meses após o desenlace do companheiro.