sexta-feira, 27 de novembro de 2020

O CANTO DA SIRICORA E OS FATOS QUE MARCARAM A INFÂNCIA

Por Nonato Reis (*)

Hoje fui exercitar o corpo no Parque do Rangedor, aproveitando a placidez das primeiras horas do ano novo. Não tolero multidão. E não consigo entender como alguém consegue se sentir bem em lugares que, de tão ruidosos, mais parecem estádios de futebol em dia de superclássico; as pessoas tentando se comunicar a todo custo, praticamente gritando, e você com aquele sorriso amarelo de paisagem. Enfim, tem gosto para tudo e não sou eu que vou ditar as preferências dos outros.

Mas retomando o fio da meada, eu corria no Rangedor quando fui surpreendido com o canto de uma siricora, que ecoou mata adentro. Ao ouvir aquele clássico “três potes, três potes, três potes...pote, pote, pote” me senti como que arremessado de volta aos confins da infância e lembrei de fatos que marcariam os primeiros anos da minha vida no Ibacazinho e me acompanhariam para sempre.

O canto da siricora produz em mim sensações antagônicas, uma mistura de nostalgia e medo e até pavor, saudade de algo que eu não gostaria de viver outra vez. Dá para entender?

Pois bem. Uma dessas lembranças é a de um sonho recorrente (ou pesadelo!) que grudou em mim até a adolescência. Sonhava que brincava com primos à noite nos arredores do Cemitério dos Anjos, e de repente uma siricora começava a entoar o seu samba de uma nota só; “três potes, três potes...”

Era a senha de que algo aterrorizante ia acontecer e todos saíam correndo, açoitados pelo fantasma de uma criança sem rosto. Os primos escapavam, menos eu, que ficava para trás, entregue à própria sorte. Mesmo assim corria desesperadamente...e quando, finalmente, alcançava a escada de casa e tentava subir os degraus, uma força misteriosa me puxava para trás e eu rolava de volta até o chão.

A siricora também permeia as lembranças da minha mãe. Ela conta que, ainda menina, a morte tomara de súbito uma colega sua, fulminada por um infarto do miocárdio. O caixão ficara menor do que a defunta e o jeito foi retirar uma de suas extremidades, deixando os pés dela de fora do esquife. Minha mãe achou graça daquilo e comentou com as amigas, que a advertiram. “Não zomba de quem já morreu porque mais tarde ela vem e te afoga”.

À noite, a luz apagada, minha mãe, completamente abstraída do quarto de dormir, corria mundo em seus pensamentos, quando teve a atenção despertada para o canto esquisito de uma siricora. Esquisito porque completamente fora de hora. Siricora só canta às primeiras horas da manhã e da noite. Nisso, um leve ruído na porta dos fundos a deixou com o corpo petrificado. Era a morta que vinha tomar satisfações com ela pelo ocorrido durante o velório.

Porém, o fato mais inusitado relacionado com essa ave ocorreria já próximo de eu deixar o Ibacazinho, aos 15 anos, para vir morar em São Luís. Um parceiro de escola e de vadiagem, ao atravessar um lago, montado a cavalo, teve provavelmente um aneurisma rompido e morreu na hora. A morte dele me abalou profundamente, e fiz questão de comparecer ao velório. Aquele rosto inchado e vermelho, como se fosse um tomate maduro, não sairia mais do meu pensamento.

Na volta para casa, de madrugada, eu caminhava a pé sobre a MA-014, perdido em divagações diante de um céu cintilante. O que acontecia com as pessoas, após a morte. Passavam para outra dimensão. Iam morar nas estrelas ou em mundos, cuja natureza não podíamos compreender? Nisso, fui surpreendido com aquele “três potes...” característico e uma onda de calor percorreu-me a coluna vertebral de cima a baixo.

Olhei para o céu. Uma estrela cadente riscou o espaço acinzelado e caiu a poucos metros de mim. Corri em sua direção. Ela ressurgiu adiante. Fez uma espécie de voo rasante sobre a minha cabeça e se perdeu para sempre no espaço infindo. Longe, muito longe a siricora retomou o seu canto, como se de mim ausente: “três potes... três potes... três potes ...pote, pote, pote”.

Nonato Reis é jornalista e escritor. Escreveu este texto em 01/01/2020. Integra o livro "Os Sinos da Matriz", com lançamento previsto para 2021.

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