terça-feira, 1 de janeiro de 2019

A CRÔNICA DO DIA


O DIA EM QUE O MARANHÃO ENCHEU AS MALAS DE DÓLARES


Por Nonato Reis

Nonato Reis
A arte de contar histórias se perde no tempo. É provável que tenha surgido com os sumérios, a primeira civilização de que se tem registro, isso há cerca de 5.000 anos antes de Cristo, ou até a uma época mais recuada no tempo, quando, segundo a Bíblia, os anjos do Senhor habitavam a Terra. Como não dava para imprimir a palavra e os meios então disponíveis eram precários e pouco acessíveis, o jeito foi transmitir oralmente as experiências acumuladas. Assim, de geração em geração, os relatos vividos chegaram aos dias atuais, muitos deles no formato de causos.

E o que seriam causos? Na definição mais inteligíveis, histórias contadas de forma simples e direta, porém com leveza e senso de humor. Os causos podem ser inventados ou não e, independente da veracidade, o que conta mesmo é a versatilidade com que são narrados.
No Brasil, os mineiros ganharam a fama de exímios contadores de histórias, mas em todas as regiões do País o gênero se disseminou e contagiou gênios da Literatura, como o poeta Mário Quintana, gaúcho, e Graciliano Ramos, alagoano, que publicou uma obra memorável, “Histórias de Alexandre”, livro protagonizado por um vaqueiro contador de causos.
No Maranhão, esses artistas da palavra vicejam aos magotes, especialmente no meio rural, e sobre eles escrevi uma crônica, reunindo os mais destacados com quem tive o privilégio de conviver. 
Um deles, um tio-avô meu, de nome Levi, que reunia plateias para ouvir suas histórias, quase sempre envolvendo espíritos e pescadores. Também o Zé Branquinho, que gostava de se exibir nos velórios, atraindo para si a atenção de um público marcado pela dor da partida do ente querido. Cumpria assim o papel importante de desanuviar o clima de opressão que marcam as cerimônias fúnebres.
Domingos Dutra
De Domingos Dutra ouvi uma história engraçada, mesmo que difícil de acreditar. Era o início dos anos 90, Edison Lobão vencera as eleições para o Governo do Maranhão, numa eleição aguerrida com o senador João Castelo. Governador, deu de cara com os cofres vazios. O dinheiro mal dava para pagar as obrigações legais. Como fazer os investimentos que se faziam inadiáveis, para garantir a retomada do desenvolvimento?
Lobão correu a Sarney, seu mentor político, e ambos tiveram uma ideia mirabolante. Articular uma grande reunião com chefes europeus e tentar convencê-los a investir num Estado que, mesmo falido, tinha enorme potencial estratégico. Lobão imaginava sensibilizar os governantes usando a figura emblemática de Sarney que, mesmo com enorme rejeição interna, pela gestão desastrosa no exercício da Presidência, gozava de prestígio internacional, onde era visto como estadista e homem de letras, responsável por conduzir o País de volta ao regime democrático.
A reunião teve lugar no parlamento francês, em Paris, e foi marcada pelo sentimento de comoção, em face do quadro dramático do Maranhão, que ostentava a condição de unidade mais pobre da federação, berço da fome e do analfabetismo. A França, como colonizadora do Estado e fundadora da única capital brasileira não lusa, tomara a iniciativa de liderar uma ajuda emergencial ao Estado, em dinheiro vivo, por meio de doações. 
Diante de um plenário lotado, que aguardava com ansiedade a chegada do governador maranhense, uma enorme sacola corria de mão em mão entre os chefes de Estado, para que depositassem nela somas em dólares, a moeda forte da época.
Passou-se meia hora, a sacola abarrotada de dinheiro sobre a mesa solene, e nada de Lobão. Mais outra meia hora, todos já à beira de um ataque de nervos, sem saber o que acontecera com o mandatário maranhense, e eis que adentra o recinto aquela figura esquálida, “um caniço em forma de gente, vestido de paletó e gravata”. 
Foi um espanto geral! O governador do Estado era a própria imagem da desnutrição que assolava o Estado. Alguns chefes de Estado, tocados de emoção, não conseguiam conter as lágrimas. Aquilo constituía uma hecatombe.
Lobão, então, ao perceber o clima de solidariedade da plateia, caminhou, passos trôpegos, até a tribuna, situada do lado esquerdo da mesa, sacou uma fotografia do bolso do paletó e a exibiu diante daquele amontoado de câmeras e flash apontados sobre ele. 
Pegou o microfone e anunciou: “Minha gente, este é o homem que me faz oposição no Maranhão”. Então irrompeu nos telões a imagem longilínea do deputado Domingos Dutra que, de tão magro, parecia o faquir das Américas.
De dor, o plenário veio abaixo. A situação do Maranhão era devastadora, e uma única sacola de dinheiro mal daria para abastecer por uns tempos a mesa dos políticos famintos. Faltava contemplar o povo, resgatar o distante berço irmão da ignomínia. E assim, sob as ordens do governo francês, deu-se início ao ritual de malas gigantes, que entravam vazias e saiam do plenário abastecidas de dólares.
...
Integra o livro de contos e crônicas "Domingos Dutra, o homem que desafiou o Futi", previsto para 2019.


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