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Márcia Friggi |
Senhora Ministra, ontem eu
também fiz brincadeiras em decorrência do seu polêmico vídeo. Brincadeiras e
deboches também são formas de resistência. Sua postura e suas falas,
entretanto, exigem uma análise séria e demandam respostas.
Há tempo observo seus vídeos que circulam na Internet e, como professora,
sinto-me profundamente ofendida e humilhada. Venho percebendo seu empenho em
colocar a sociedade contra a educação brasileira e seu magistério. Para
ilustrar o que afirmo, além dos links de dois vídeos que seguem abaixo deste
texto, vou citar algumas das suas afirmações que me têm deixado triste e
profundamente revoltada. Sobre o famoso “Kit Gay”, Senhora Ministra, que jamais
existiu e a senhora sabe disso, tratava-se na verdade, do “Projeto escola sem
homofobia”, que seria voltado para os professores, não para os alunos. Nesse
projeto, sequer havia o livro “Aparelho sexual e Cia”. Projeto esse que foi
vetado pelo governo federal em 2011, devido ao fato de ter sido alvo de
críticas dos setores conservadores, os quais a senhora faz parte. Aproveito
para alertar que muitas das escolas brasileiras, sequer possuem biblioteca, a
minha é uma delas. O que temos, no momento, é uma Kombi doada pela comunidade
escolar e transformada em biblioteca através de um projeto meu.
Frequentemente a senhora usa suas falas, nos púlpitos das suas igrejas, para
denegrir o trabalho dos professores e para nos colocar como responsáveis pelos
problemas de uma geração, inclusive nos ataca como agentes de “perversão” e
“doutrinação”.
Em um dos seus vídeos, a senhora menciona um material que supostamente faria
apologia ao sexo com animais. Senhora Ministra, talvez a senhora não conheça
muito bem a regulamentação do exercício do magistério. Nós, professores, somos
fiscalizados pelos nossos superiores: coordenação, direção e secretarias de
educação. Os materiais que utilizamos, os livros escolhidos e até mesmo as
nossas provas, são analisadas e aprovadas pelas instâncias superiores antes que
cheguem aos os alunos.
Nesses vídeos a senhora também se refere a um “suposto projeto” de 2004 e com
tom irônico, a senhora fala: “Não posso falar o nome da prefeita, não posso
falar que ela é do PT e também não posso falar que foi esposa do Suplicy, mas
juntamente com o grupo GTPOS, ela gastou mais de dois milhões de reais num
programa”. Programa esse, ao qual a senhora afirma ter sido atribuída a função
de promover, nas creches, o incentivo a ereção e masturbação de bebês de sete
meses. Com essa sua fala, a senhora coloca os pedagogos e pedagogas que
trabalham com a educação infantil na condição de criminosos, mais do que isso,
na condição de doentes pervertidos. Meus colegas pedagogos, senhora ministra,
que tão atenciosamente cuidam das nossas crianças e neste momento abro um parêntese
para lembrar a heroica professora Helley Abreu Batista que morreu, com 90% do
corpo queimado, após retirar seus alunos de um salão em chamas e de lutar
contra o vigilante que ateou fogo à creche, em Janaúba, norte de Minas Gerais,
em 2017. Meus colegas pedagogos, senhora ministra, jamais cometeriam esse
crime, nem mesmo sob tortura.
A senhora, nos seus ataques, sempre focou a educação e o magistério brasileiro,
esse foco não é inocente, é estratégico. Desmoralizar, humilhar, deslegitimar e
demonizar os professores, colocar a sociedade contra nós e contra a educação,
só nos enfraquece ainda mais. Como se já não bastassem nossos baixos salários,
a falta de condições estruturais, a ausência e a falta de incentivo a bons
cursos de formação continuada. Como se já não bastasse o desrespeito e a
violência com que somos tratados em nossos atos de protesto, paralização e
greve, enquanto políticos protegidos e aquartelados, debocham das humilhações
das quais somos vítimas. Ao nos enfraquecer, a senhora enfraquece a educação e
isso lhe é extremamente útil e providencial. Um povo sem acesso à educação de
qualidade é muito mais fácil de “doutrinar”, de transformar em “ovelhas”, em
“inocentes úteis” e nós sabemos muito bem onde, verdadeiramente, vem ocorrendo
a “doutrinação” no Brasil e sob que circunstâncias e métodos.
Vou falar brevemente, Senhora Ministra, sobre o que fazem os professores para
muito além das suas atribuições. Somos nós que, na maioria das vezes,
descobrimos quando um aluno possui deficiência visual, porque na sala de aula
temos parâmetros de comparação. O aluno está sentado na mesma distância do
quadro em que estão seus colegas, mas franze a testa, comprime os olhos. Somos
nós que chamamos os pais e alertamos.
Muitas vezes, Senhora Ministra, somos nós que percebemos um problema mais
grave. Nossos olhos treinados e experientes conseguem detectar o aluno ou aluna
que se isola, nega-se a realizar trabalho em grupo, não participa do recreio,
tende a ficar no mesmo lugar e realizar movimentos repetitivos com o corpo.
Somos nós que alertamos os pais e depois da avaliação médica, enquanto a
família vive o luto de um diagnóstico de autismo, por exemplo, nós professores
seguimos trabalhando métodos e estratégias para incluir esse aluno da melhor
forma possível.
Somos nós, Senhora Ministra, que muitas vezes percebemos a automutilação em
alguns alunos e ela não se deve ao nosso trabalho de “doutrinação” como a
senhora tenta afirmar, ao dizer que confundimos nossas crianças com a
“ideologia de gênero”. Os adolescentes que chegaram até mim com automutilação,
viviam um cotidiano familiar desestruturado. Desestruturado no seio da “família
tradicional” que a senhora tanto defende. O que a senhora propaga e demoniza
como sendo “ideologia de gênero”, na realidade do chão da sala de aula, Senhora
Ministra, é a exigência do respeito, é o cuidado para com todos os alunos, é a
luta contra o bullyng que pode destruir emocionalmente um aluno e até levá-lo
ao suicídio, é a educação contra a cultura do estupro e do machismo. Nós
enfrentamos salas de aulas superlotadas, lidamos com as particularidades de
cada aluno e incentivamos o respeito para com todos, sem o qual, não seria
possível ministrar uma aula.
Somos nós, Senhora Ministra, que percebemos pela postura corporal, pelo
silêncio, pelo olhar triste de quem suplica por socorro, quando uma criança ou
adolescente é vítima de violência sexual, violência essa, normalmente sofrida
no seio da “família tradicional”. Somos nós, Senhora Ministra, que conversamos
com essa criança, que ouvimos o relato do seu sofrimento, que tomamos as
providências, que chamamos o conselho tutelar e somos nós que acompanharemos
essa criança ou adolescente com atenção e cuidado redobrados.
Finalmente, Senhora Ministra, são inúmeras as nossas atribuições, as quais nos
entregamos com amor e seriedade, respeito para com nosso diploma, para com
nosso juramento e para com a instrução conquistada através da disciplina, do
estudo e da leitura que, certamente, não foi adquirida no espaço do whatsapp.
Somos nós, professores, que olhamos, cuidamos, educamos, instruímos e ensinamos
as crianças e jovens deste país. Somos nós que protegemos essas crianças e
jovens quando a família falha e quando o Estado falha.
Esta minha carta aberta tem dois objetivos: pedir-lhe mais respeito para com a
classe do magistério. Venho também, oferecer-lhe um conselho, desça dos seus
delírios fakes, Senhora Ministra, pise no chão e encare a realidade. Porte-se
com a seriedade que a importância do seu cargo exige. Deixe assuntos fúteis
como cor de roupa adequada para seus colóquios no púlpito da igreja, No
exercício da sua atual função como ministra, olhe para o magistério brasileiro
com olhos da verdade. Olhe pelos quase seis milhões de crianças sem o nome do
pai nos seu registro. Encare a quinta maior taxa de feminicídio no mundo e que
vem aumentando assustadoramente, alimentada pela cultura do machismo e da
violência. Olhe para os milhões de mulheres que, longe da família tradicional,
criam seus filhos sozinhas e com dignidade. Olhe para as crianças e jovens que
estão nas ruas, Senhora Ministra. Lembre-se que essas crianças não se perdem na
rua, foram perdidas dentro de casa, no seio das famílias tradicionais ou não e
negligenciadas pelo Estado, as ruas apenas as adotam. Olhe para os LGBTs e às
violências que têm sido vítimas. O Brasil é o país quem mais mata LGBTs no
mundo e temos visto esse número aumentar, incentivado pela cultura da
intolerância.
A senhora deve estar se perguntando: “Quem é essa professorinha petulante que
me escreve essa carta aberta?” Vou facilitar para a senhora, vou me apresentar.
Sou Marcia Friggi, poeta e professora de Língua Portuguesa e Literatura do
Estado de Santa Catarina. Exerço meu cargo após ter sido aprovada em concurso
público, submetida a rigorosos exames médicos periciais, além de ter passado
pelos três anos de estágio probatório. Sou aquela professora que foi
violentamente agredida por um aluno em 2017, caso que teve repercussão nacional
e internacional. Sou a professora que, após violência física, sofreu
linchamento virtual por parte dos que comungam das suas ideias. A professora
que teve sua imagem com o rosto ensanguentado, usada sem autorização, pelos
mesmos que me atacaram virtualmente, para promover a campanha política
eleitoral do seu candidato.
Naquele período, visitei o inferno e sobrevivi. Sobrevivi à depressão, à fobia
social, a crises de ansiedade, à insônia e à vontade de morrer. A tudo isso,
talvez se deva a minha ausência de medo. Eu não tenho medo porque sou uma
sobrevivente, porque na minha casa não há uma agulha sequer que não tenha sido
comprada com o suor do trabalho honesto. Não tenho medo porque não ocupo e
nunca ocupei cargo comissionado. Não tenho medo porque nunca dependi de favores
políticos. Não tenho medo porque pelas minhas mãos jamais passou dinheiro
público. Finalmente, Senhora Ministra, não tenho medo porque se ao seu lado
está o governo atual e suas “ovelhas”, do meu está o mundo. Do meu lado está um
mundo inteiro que não aceita mais retrocesso. Um mundo que deseja respeito para
com todas as pessoas. Um mundo que não aceita mais discriminação, intolerância,
preconceito, machismo, homofobia, xenofobia. Um mundo que deseja que uma mulher
possa terminar uma relacionamento sem ser agredida ou morta. Um mundo que
respeita a vida e a natureza. Um mundo que se pretende mais humano, justo e
igualitário. Não tenho medo, Senhora Ministra, porque minha militância pelas
causas que considero justas sempre foram exercidas nas ruas e no espaço
virtual, nunca na sala de aula. Não tenho medo, Senhora Ministra, porque sou
adepta da paz e minha única arma é a palavra e é dela que venho me utilizando
como um instrumento de amor à vida, à liberdade, à arte e à resistência. Já
participei de algumas coletâneas como escritora, minha última participação foi
no “Mulherio das Letras”, o que muito me honra. Neste ano de 2019, lançarei meu
primeiro livro de poesia, no qual estão muitos dos meus poemas de cunho social
e resistência. Está também, entre meus projetos mais importantes, o livro sobre
“denúncia dos flagelos que sofre o magistério brasileiro”, o qual percebo de
suma importância, considerando os constantes ataques e humilhações a que somos
submetidos.
Ainda nos veremos, Senhora
Ministra, nas batalhas pacíficas da vida, das quais eu jamais fugi.
Marcia
Friggi
Poeta e professora de
Língua Portuguesa e
Literatura do Estado de Santa Catarina