HOJE É DIA
DE...
O
NATAL NO IBACAZINHO E O PATO AMALDIÇOADO
Nonato Reis
Era véspera de Natal e o Ibacazinho parecia viver um dia como
outro qualquer, marcado pela monotonia do seu cotidiano. Naqueles anos
dominados pela luz do querosene, um dos raros sinais da aproximação do
nascimento do Cristo eram as músicas típicas da época, que as emissoras de
rádio reproduziam à exaustão, martelando o cérebro das pessoas com aquele som
mágico e nostálgico das harpas.
Outro indicativo da presença do Messias entre os homens, ironicamente,
constituía uma transgressão às leis cristãs, porém atenuada com o que hoje
poderia ser classificado como indulto.
À meia-noite do dia 24, no limiar
do Natal, diante da mesa posta, algum morador recebia seus convidados para
tomarem parte na famosa “Ceia da Meia-Noite”. O banquete tinha uma aura de
subversão, já que a iguaria oferecida, geralmente um pato ao molho pardo, tinha
que ser necessariamente roubada, sob pena de apagar-se o encanto.
Véspera de Natal, Pedro Castro, Eugênio, Maroto e Sebastião
Xoxota – amigos inseparáveis - caminhavam distraídos na estrada que divide o
Ibacazinho ao meio, a MA-014, principal elo entre os municípios da Baixada. De
repente avistaram um casal de patos a nadar na Baixa de João Cidreira. Pedro
olhou para Tião, o mais experiente do grupo, ele entendeu o sinal e advertiu em
voz baixa: “são de Bornó”.
Bornó
era conhecido pelo gênio intragável. Andava mancando e inclinado para um lado,
como se carregasse um peso além da sua capacidade, seqüela, provavelmente, de
uma poliomielite jamais diagnosticada. Os moradores do Ibacazinho, no entanto,
sempre chegados a uma superstição, tinham outra explicação.
Ainda
menino um sapo todo amarrado de linha preta cruzara o seu caminho. Deu-lhe um
chute de bico e o arremessou para longe do seu caminho. Logo depois sentira uma
dor aguda que o fizera cair enfermo.
Resistiria
ao veneno ou ao feitiço do bicho, mas dele jamais se esqueceria. Ficara com uma
perna atrofiada, menor do que a outra.
Esse,
porém, era um detalhe físico, apenas. Bornó chamava mesmo a atenção pelo seu
jeito calado e irritadiço. Durante muito tempo morou com a mãe, que já tinha
idade avançada. Numa brincadeira de Serra Velha, botou os moleques para correr,
armado com um facão velho, enferrujado. Nunca esqueci o episódio por causa da
penicada que levamos com urina dormida misturada com alho, cebola e pimenta do
reino. O mau cheiro perdurou por dias, mesmo tomando banhos diários com
sabonete e até detergente.
Difícil
roubar as frutas do pomar que Bornó cultivava ao redor da casa. Eu mesmo tentei
algumas vezes e me dei mal. Numa delas, tive que fugir às pressas, açoitado
pelo cão vira-latas, repleto de pulgas, que cumpria à risca a honrosa função de
guardar a casa e os interesses domésticos.
Noutra,
tentei escapar por entre um vão e outro da cerca de arame farpado e nela deixei
metade da camisa, que ficou a tremular entre as pontas afiadas do metal.
O casal de pato surgira ao acaso, e Tião, prevendo complicações, tentou demover
o grupo daquela aventura. Voto vencido, porém, ainda se viu obrigado a aceitar,
por sorteio, a missão de apanhar a ave, cuja escolha recaíra sobre o macho,
devidamente amarrado e escondido dentro do mato. A ceia da meia-noite estava
garantida e dela tomariam parte, além do quarteto, mais seis parentes,
incluindo os donos da casa onde o banquete seria preparado.
Só
que no meio da festa, o “Sangue de Boi” correndo de mão em mão e os pratos já
postos à mesa, eis que surge Bornó, os olhos faiscando e o velho facão
enferrujado na mão direita, pronto para ser usado.
Foi
um pandemônio, neguinho tentando se esconder em baixo da mesa ou escapar pela
porta dos fundos. Bornó queria o pato de volta, que a essa altura jazia na
panela, imerso em caldo borbulhante. Olhou nos olhos de cada um, colocou o
facão em cima da mesa, e deu o ultimato.
-
Ou vocês me dão o meu pato de volta ou não sai nenhum daqui para contar
estória.
Ninguém sabia o que fazer, nem o que dizer. Na esteira da indecisão Eugênio
tomou a palavra e sugeriu a única saída possível. “Bornó, o pato não pode
ressuscitar, mas nós podemos pagar o teu prejuízo. Quanto você quer por
ele?”.
Os
olhos de Bornó brilharam e dessa vez não foi de raiva. “O pato é de estimação”,
avisou, ensaiando o discurso do bom vendedor, que sabe valorizar o produto.
Cobrou
um preço muito acima do que a ave realmente valia. Resignado, o grupo aceitou,
e ainda o convidou para participar da ceia, que aceitou de bom agrado.
Serenados os ânimos, todos sentaram novamente à mesa, e deu-se início à
celebração do estômago. Tião ficou em silêncio, assim como os demais, mas o
arroz lhe pareceu meio cru, como se tivesse cozinhado às pressas. De tão
crocante, parecia farinha de mandioca torrada ao forno.
Já
era madrugada alta, quando o banquete terminou e todos retornaram para casa. Na
saída, porém, Bornó se voltou para o grupo, e o falcão em riste, advertiu em
tom profético: “Isso não vai ficar assim. Esse pato vai sair caro para vocês”.
Tião
Xoxota viu aquilo como uma mera repetição, já que o preço cobrado pelo pato era
exorbitante. No dia seguinte, porém, ao ver a turma toda no estaleiro, entrando
e saindo do matagal a toda hora, ele pode enfim compreender o alcance daquelas
palavras. Tião desidratou, perdeu peso, ficou parecendo “um aracu desovado”,
como diria a avó dele, a Dona Emergulina. Nunca mais participou de “meia-noite”
de Natal no Ibacazinho.
Até
hoje, quando o chamam para comer pato, ele faz o sinal da cruz, dá uma
cusparada de fumo de rolo e, de pronto, rechaça o convite. “Deus me livre de
pato. Isso é comida amaldiçoada”.
(*) Nonato Reis é jornalista, poeta e autor dos romances "Lipe e Juliana" e "A saga de Amaralinda". É natural de Viana-MA.