HOJE É DIA
DE...
TANCINHA, A MULHER QUE PARIU UM
CÃO
Por Nonato Reis
Boato em cidade pequena do interior, sabe como é: queima e se
espalha rápido que nem fogo em canavial. E isso, mesmo em um tempo em que
telefone, internet e rede social ninguém nem sabia o que era. A notícia corria
mesmo era de boca em boca, por meio das más e das boas línguas. Não havia quem
não se intrometesse na história e dela tomasse parte, seja como autor,
personagem, narrador ou simplesmente assistente. O pau corria solto, para usar
um linguagem típico da Baixada Maranhense.
A notícia que acabara de sair do forno era por demais cabeluda e tinha a força
destruidora de uma bomba de murrão. Tancinha, a menina-moça do coronel
Idelfonso (Idelso, para os íntimos), preparada e talhada para ser uma dama do
lar, embuchara.
A coisa começou com uma simples
suspeita, quando ela sentira um mal súbito em plena missa dominical, com a
igreja apinhada de fieis. Do nada, perdera a cor e por pouco não desmaiara.
Socorrida pelos familiares e
também pelo padre Bento ao pé da sacristia, a menina logo recobrou os sentidos
e tratou de banalizar o caso. “Foi só uma tontura, alguma coisa que comi e me
fez mal”. Até aí, tudo bem, problemas digestivos acontecem e deles ninguém está
imune. Ocorre que a coisa acabou se tornando rotina e vire e mexe Tancinha tinha
um catiripapo. Passou a enjoar, vomitava do nada. Perdeu peso, os seios
incharam, a barriga começou a saltar.
Até o dia que alguém teve um
estalo, compartilhou a suspeita com outro e pimba! A coisa explodiu. “Tá
prenha, sim senhor! Prenhazinha da silva”.
A notícia, como se costuma dizer
entre as comunidades ribeirinhas do ‘Maracu”, correu beirada, incendiou os
vilarejos. O problema, por si mesmo delicado, assumia um tom ainda mais grave
por se tratar de uma filha do homem mais brabo e poderoso da região.
E pior, virgem! Ou pelo menos,
tida como tal. Porque na verdade Tancinha perdera o selo de castidade desde que
se deitara na cama de pau d’arco da mãe com o caixeiro viajante Apolinário, o
Popó.
Foi num dia em que a família fora
ver o espetáculo da Esquadrilha da Fumaça, que pela primeira vez se exibia nos
céus de Viana. Tancinha, virada do juízo pelo caixeiro, e cedendo aos apelos
dele, inventou dor de cabeça para ficar em casa na companhia do
‘quase-namorado’. Vendo a chance de ouro de sua vida, talvez única, Popó não
perdeu tempo e tratou de conduzir Tancinha ao estaleiro que, assim, aos 21
anos, deixava o círculo das donzelas e adentrava o das ‘mulheres bulidas ou
mexidas’, ou, no linguajar típico da época: ‘das putas recatadas’.
Mas disso só ela e Popó sabiam.
Popó, aliás, após consumar o ato, ante a promessa de levar a dama ao altar,
tratou de dar no pé e sumiu na buraqueira, deixando com Tancinha a dor e a
saudade. Ela, porém, jamais esqueceria aquele sujeito elegante, de fala mansa,
carinhoso até a alma, bem-falante e físico de atleta.
No rosto Popó exibia uma cicatriz
em cruz, que ele dizia ter sido herança de um duelo que travara com outro
caixeiro, por dívida de jogo. Outro detalhe marcante era o nariz que,
arredondado e com os orifícios enormes, mais parecia um focinho de porco.
Em pouco tempo, todo mundo já
sabia da novidade e comentava abertamente, às margens do rio, no campo de
futebol, nas bodegas e até nas sentinelas, menos o coronel Idelfo, que foi o
último a tomar ciência do ocorrido, por meio da esposa Naná.
Com surpreendente tranquilidade,
o coronel reuniu a família na sala principal da fazenda e colocou Tancinha
sentada em uma cadeira no centro. “Agora debulha. Diga quem foi o autor de
tamanha barbárie, para que eu possa acertar as contas com ele”.
Tacinha, branca por natureza,
ficou azulada, perdeu a voz e não conseguia dizer nada. O coronel, no limite da
paciência, ralhou: ‘diga!’. Suando em bicas, a voz parecendo um grunhido,
soprou: “Dublan!”. Incrédulo, o velho berrou. “Dublan? Mas quem é esse
malfeitor que eu nunca ouvi falar na vida?”, ao que ela completou: “Meu
cachorrinho de estimação!”.
A revelação deixou a todos
atônitos, até o coronel perdeu a voz. Não podia ser! Como poderia um cachorro
manter relações com uma mulher, e o pior: emprenhá-la! Seria possível? O
assunto vazou e em poucas horas o povoado inteiro ficaria sabendo que Tancinha
embuchara de Dublan. A família correu até o padre Bento, pediram-lhe
explicação. “Deus permitiria uma coisa dessa?”. O padre, conservador até o
bigode, corou, fez o sinal da cruz três vezes, mandou todos se retirarem da
igreja. “Vão se embora daqui. Isso é uma blasfêmia. É coisa do demo!”. Porém
recomendou à menina que rezasse 300 Pai Nossos e 500 Ave Marias. “E peça ao
Senhor que tenha compaixão de ti, pobre pecadora!”.
O coronel pensou em matar o
cachorro. Bastava uma bala na cabeça. Mas a questão se encerraria com a morte
do cão? Concluiu que não. E se Tancinha estivesse mentindo para tentar proteger
o verdadeiro criminoso? Na dúvida foi ter com o médico e compadre Abenildo,
quem sabe ele tinha uma explicação correta para o caso.
O doutor coçou a cabeça, depois
falou de forma categórica. “Meu compadre Idelfo, até hoje não há um único
registro na literatura médica sobre casos de hibridismo com homo sapiens”. O
coronel perdeu a paciência. “E que diabo é isso, home!” O compadre explicou que
hibridismo, naquele caso, seria a cria resultante do cruzamento de um humano
com um animal.
O caso não desatava e o coronel
já se preparava para deixar o consultório, quando o médico propôs o que lhe
pareceu uma saída sensata. “Meu compadre, não faça nada agora, espere a
Tancinha ter a criança, ou seja lá o que for. Se a coisa nascer com algum traço
de bicho, aí se terá uma pista mais segura para o diagnóstico. Se não, é porque
o pai da criança é o bicho homem”. E assim, foi.
Meses depois de espera e
angústia, Tancinha dera à luz um filho macho, e de animal ou algo parecido o
moleque tinha apenas o nariz, no formato de um focinho.
Do livro "A Fazenda Bacazinho" de autoria do
poeta e romancista Nonato Reis.