sábado, 14 de outubro de 2017

A CRÔNICA DO DIA

HOJE É DIA DE... 


ZÉ DA BURRA E O AMOR A “DAS DORES”

Por Nonato Reis

Imagem ilustrativa da internet
Nenhuma frase ou palavra seria capaz de descrever a relação de Zé da Burra com a “Das Dores”. Ele tinha por ela uma mistura de sentimentos que ia do amor à loucura, cruzando no caminho com o fanatismo e o desespero - uma força misteriosa que os ligaria para além da vida e do senso comum. Das Dores aparecera na vida do carroceiro ainda bebê, após um parto prematuro, que levou a mãe dela para o mundo invisível.
Órfã e necessitada de cuidados especiais, teria tido o mesmo destino da mãe, não fora a iniciativa de Zé, de levá-la para casa e dela cuidar como se fora uma filha.
Fizera-lhe cama de paparaúba – uma madeira leve e macia. Dava-lhe banhos diários, leite de cabra na mamadeira e atenção todas as horas do dia e da noite. Tanto desvelo despertou o ciúme da esposa, Joana, que não entendia aquela estranha ligação. “Home, tu ficou doido do juízo! Donde já se viu tratar um animal como se fosse gente! Nem comigo, que sou tua mulher, tu tem esse chamego”. Zé dava de ombros. “Deixa de besteira, Joana. A coitadinha é uma infeliz, que nunca nem conheceu a mãe. Se eu não tratar dela direito, como que vai se criar?”.
Sob os cuidados de um pai zeloso, Das Dores “empinou a curica”. Cresceu, ganhou peso. Tornou-se um belo exemplar da espécie equina. O amor entre os dois também se fortalecia a cada dia. Para onde um ia, o outro ia junto. Até nas festinhas de radiola, que Zé comparecia com frequência, lá estava a égua a lhe fazer companhia. Às margens do rio Maracu, Zé fazia a higiene do animal: dava banhos, podava a crina, penteava os pelo; inspeciona o estado dos dentes e das patas.
Conversava com ela como se fosse gente. Das Dores, aliás, tornou-se a confidente de Zé de todas as horas. E foi a primeira a saber quando ele decidiu mandar Joana embora de sua vida, após esta lhe ter dado um ultimato para que escolhesse entre si e o animal. “Vê se tem cabimento ela querer que eu me prive de ti! Antes vá ela cuidar da vida, que não sou homem de se dobrar aos caprichos de mulher”, ao que a égua parecia concordar, abanando o rabo de um lado a outro.
O desenlace do casamento, porém, foi traumático, porque Joana não aceitou passivamente ser preterida por uma égua. Após ‘fazer as trouxas’ postou-se na frente da casa e, aos berros, comunicou ‘ao povo da rua’ que se separava do carroceiro por infidelidade conjugal dele. “Que todos fiquem sabendo. O Zé, meu ex-marido - que agora eu não quero mais nem pintado de ouro - me largou por causa de uma égua! Isso mesmo que vocês ouviram: o Zé, meu ex-marido, me traiu com a Das Dores. Os dois estão apaixonados. Na maior sem-vergonhice, viraram amantes debaixo das minhas fuças”.
O caso, antes tratado “a boca pequena” – na comunidade até as paredes das casas especulavam que Zé e Das Dores mantinham uma relação muito além dos laços de amizade, ou de pai e filha, como ele preferia - tornou-se assim escancarado e foi bater na delegacia, por conta de uma queixa de moradores indignados com o que consideravam um atentado contra a moral e os bons costumes. O delegado Josias Carteiro, sem outra saída, viu-se obrigado a chamar o carroceiros às falas.
- Seu Zé da Burra, por mim nem mexia nesse negócio, porque eu já tenho muitos problemas para me ocupar. Mas acontece que recebi uma reclamação formal contra o senhor e é meu dever averiguar. O senhor está tendo um caso com uma égua?
O carroceiro, para surpresa do delegado, ao invés de rechaçar, confirmou a acusação e foi além:
- É verdade, seu delegado. Mais do que um caso, eu amo a Das Dores. E agora que eu me livrei da Joana, é minha intenção regularizar esta situação para que as coisas fiquem nos conformes da lei.
O delegado não entendeu o alcance das palavras de Zé e cobrou explicação.
- Desculpe, seu Zé, mas queira ser mais claro. O que o senhor quer dizer com “regularizar a situação”?
- Casar, seu delegado. Eu e a Das Dores vamos casar de papel passado. Não é assim que se resolve uma situação dessa?
O delegado fitava Zé com os olhos esbugalhados, sem saber se o carroceiro falava a sério ou fazia troça com ele.
- Seu Zé, antes de mais nada, não se esqueça que o senhor está diante de uma autoridade da lei. Não queria brincar comigo, porque o senhor pode se dar muito mal.
- Longe de mim desrespeitar o doutor Carteiro. O que eu quero é viver debaixo da lei, que sempre fui um homem sério e cumpridor de meus deveres.
O delegado então explicou a Zé da Burra que a ideia dele era impraticável, já que não havia como casar um homem com um animal. 
- Isso é contrário à lei, seu Zé.
- Onde que a lei diz que não pode, seu delegado?
- A lei diz que o casamento se dá entre um homem e uma mulher.
- Mas diz que não pode entre um homem e um animal?
- Não diz. Não precisa dizer.
- Seu delegado, o senhor me adesculpa, que sou um homem ignorante. Mas ouço dizer que aquilo que a lei não diz não é proibido. E já que não diz que não pode, é porque pode.
O delegado, já impaciente, e vendo-se jogado num beco sem saída pela pertinácia do carroceiro, despachou-o sob ameaça.
- Seu Zé, vá embora e não volte mais aqui, antes que eu mande prendê-lo por ofensa da lei. Procure a igreja e peça perdão pelos seus pecados.
Imagem da internet
A frase final do delegado acendeu uma luz na mente do carroceiro. Se a lei dos homens não o deixava casar-se com Das Dores, quem sabe a lei de Deus o permitia? Afinal, ele amava aquela égua como jamais amara alguém, e Deus abençoa o amor sincero.
Foi ter com o padre Jozino, que, anos atrás, fora um velho amigo de seus pais, já falecidos.
Na sacristia, onde dava orientações para a festa do mês mariano, consagrada à Virgem Santíssima, o padre o saudou com entusiasmo.
- Ora, ora, quem nos visita! A que devo a honra da sua presença, seu José?
Após pedir e receber a bênção do religioso, um homem já de cabelos grisalhos e venerado pela comunidade, o carroceiro foi direto ao assunto.
- Seu padre, eu quero me casar de novo.
O padre levou um susto.
- Mas já, seu José? Que eu saiba a sua esposa acabou de sair de casa.
- Saiu para não voltar mais, seu padre. Meu caso com ela está liquidado. É favas contadas.
- Bom, mas ninguém casa, descasa e casa de novo assim de repente, Seu Zé. O senhor terá primeiro que regularizar sua situação, perante a lei.
- A lei dos homens não me favorece, seu padre. Mas a lei de Deus, essa sim. Num é Deus que recomenda que deve de ter amor sincero entre um casal, para que seja abençoado por Ele?
O padre fitou Zé com interesse e o interpelou.
- Seu Zé, a propósito, quem é esta mulher, a quem o senhor jura esse amor aprazível a Deus?
- É a Das Dores, que outra melhor nunca vi.
- Das Dores? Não me lembro de tê-la conhecido. É nova aqui na comunidade?
- Seu padre, Das Dores é aquela eguinha que eu cuidei desde menina, dando leite na mamadeira, tratando como uma filha. Como que o senhor não se lembra? 
O padre arregalou os olhos e teve um acesso de tosse, que quase o matou. Em seguida, os olhos faiscando e lacrimosos, enxotou o carroceiro da sacristia.
- Retire-se da casa de Deus, que o senhor não é digno de estar aqui!
- Padre, pelo amor de Deus. Eu só quero a bênção do Senhor para a minha união com Das Dores. Não me negue isso.
- Deus não abençoa a desfaçatez. Onde já se viu casar com um animal? O senhor enlouqueceu?
- De amor, seu padre! Eu amo a Das Dores, e Deus abençoa o amor.
- Isto que o senhor chama de amor é coisa do demônio. E aqui não tem lugar para Satanás. Saia daqui imediatamente!
E de posse de uma vassoura, botou o carroceiro porta afora da igreja, como quem varre o lixo.
Triste, amargurado, Zé da Burra entendeu que estava perdido. Temente a Deus, jamais viveria fora das bênçãos do Senhor. Também não tinha como se afastar de Das Dores, o único ser vivo na Terra a quem jurara amor eterno.
Fechou-se em casa para sempre. Não mais comeu nem bebeu. Por amor, imolou-se. A notícia correu beirada e se espalhou no povoado feito fogo em canavial. “Zé da Burra morrera por paixão a Das Dores”.

Ao velório do carroceiro, quase ninguém compareceu. Apenas o padre Jozino, em face da obrigação sacerdotal, o sacristão Antônio, que o auxiliava no ofício, a ex-mulher Joana que, temente a Deus, achou por bem perdoá-lo, e a égua Das Dores, que não apenas assistiu ao enterro, como jamais se afastaria da sepultura, até os últimos dias de vida. Sem comer, e apenas tomando a água que brotava misteriosamente da cabeceira do túmulo do carroceiro, Das Dores morreu no alvorecer da primavera, três meses após o desenlace do companheiro.

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